Psicanálise e Cultura

Abrindo uma janela um tanto indiscreta na obra de Alfred Hitchcock

Abrindo uma janela um tanto indiscreta na obra de Alfred Hitchcock*

Antonio Carlos J. Pires

* Texto apresentado, em 31 de agosto de 2002, no Ciclo de Cinema e Debate Alfred Hitchcock, promovido pela Associação Brasileira de Psicanálise, Sociedade Psicanalítica de P. Alegre, Sociedade Brasileira de Psicanálise de P. Alegre e Sociedade Psicanalítica de Pelotas.

 

Hitchcock é cultuado por cineastas e cinéfilos do mundo inteiro por ter sido um mestre do suspense e pela maneira genial com que filmava, privilegiando sempre a imagem em relação ao diálogo. Segundo François Truffaut (1), () não é necessário escolher uma cena de suspense; o estilo hitchcockianano será reconhecido mesmo em uma cena de conversa entre dois personagens simplesmente pela qualidade dramática do enquadramento, pela maneira realmente única de distribuir os olhares, de simplificar os gestos, de repartir os silêncios ao longo do diálogo, pela arte de criar no público o sentimento de que um dos personagens domina o outro (ou está apaixonado pelo outro, ou tem ciúmes do outro), de sugerir, fora do diálogo, toda uma atmosfera dramática precisa (). Neste sentido, Janela indiscreta, rodado em 1954, também pode ser visto como uma aula sobre a difícil arte de mostrar, com simplicidade, economia e clareza, os sentimentos dos personagens de um filme predominantemente através de pictogramas. Talvez por ter tido uma formação cinematográfica iniciada na época dos filmes mudos, Hitchcock parecia sentir-se mais à vontade com imagens do que com diálogos explicativos. A exemplo disso, já no início do filme, o diretor nos informa, tão somente a partir de fotogramas, que o personagem vivido por James Stewart havia quebrado a perna ao tentar registrar com sua câmera fotográfica uma corrida de carros. Será que algum de nós, espectadores, sentiu falta de algum diálogo explicativo para compreender este fato? Creio que não. Apenas algumas imagens (a perna engessada, a foto do carro de corrida, a câmera fotográfica quebrada) puderam dar conta do recado que o diretor queria nos transmitir.

Mas, antes de falar sobre a maneira como vi Janela indiscreta, gostaria de deixar claro que minha leitura deste filme é apenas uma dentre as inúmeras leituras psicanalíticas possíveis desta obra. Gostaria também de enfatizar que, deliberadamente, deixei de lado a questão voyeurista explicitada nesta película, por acreditar que este aspecto já foi suficientemente explorado pelos críticos de cinema.  Qual seria, então, a proposta não explícita, se assim se pode dizer, de Janela indiscreta? Por que e de que maneira este filme nos toca, ora nos deixando intrigados, ora excitados, ora assustados e assim por diante?

Ao tentar responder estas questões, precisarei, inicialmente, contar-lhes uma breve história que me foi relatada por um amigo, há alguns anos. Certa ocasião, um rapaz encontrou-se com seu irmão e disse a ele:

Olha, fulano, eu queria te dizer que estou pensando em noivar com a beltrana.

Fulano ouviu atentamente o irmão e, como naquele momento não lhe ocorreu nada para falar, ficou em silêncio, apenas olhando o outro com uma expressão serena no rosto. Ato contínuo, o rapaz, um tanto desorientado com o silêncio do irmão, bradou:

– Pô, fulano, não precisa me  olhar assim  desse jeito!  Noivar não é a mesma coisa que casar!   

O que aquele rapaz parecia não saber, pelo menos até aquele momento, era que a

sua intenção de noivar não  estava totalmente  desprovida de ambivalência.  Por alguma razão desconhecida, de ordem inconsciente,  ao lado do desejo de ficar noivo, havia  também o receio de tomar tal decisão. Assim, debatendo-se internamente entre a vontade de noivar e o temor em fazê-lo, tentou livrar-se desse conflito lançando mão, sem se aperceber, de um mecanismo de defesa inconsciente. A partir daí, Fulano ficou sendo o representante do temor em relação ao noivado, mesmo que, do ponto de vista da realidade, ele não houvesse dito nada e ainda que a expressão de serenidade do seu rosto não sugerisse qualquer preocupação frente à notícia recebida. Uma vez “livre” da sua preocupação com o noivado, o rapaz ficou, pelo menos durante algum tempo, com a sensação que tinha dentro de si apenas o desejo de noivar. Naquele instante, como que por magia, parecia que seu conflito estava resolvido. Penso que é justamente deste tipo de magia de que Janela indiscreta está repleto.

O mecanismo que acabei de descrever na história do nubente assustado é conhecido entre os psicanalistas como identificação projetiva. Este conceito, que representou um enorme passo dado na direção de um melhor entendimento da mente humana, foi cunhado por Melanie Klein. A identificação projetiva é um meio bastante primitivo de comunicação não verbal, de caráter inconsciente, e que também funciona como um instrumento muito efetivo para livrar o indivíduo do contato com situações conflitivas da sua mente. Assim, através da identificação projetiva, podemos acionar na mente do nosso interlocutor um estado mental que corresponde a aspectos do nosso mundo interno com os quais temos dificuldades de lidar e dos quais queremos nos livrar por gerar em nós algum grau de sofrimento psíquico. Peço que retenham este conceito na memória, por um momento, porque ele nos será útil daqui a pouco.

Sabemos que toda obra artística, a exemplo do que ocorre na elaboração dos sonhos, tem sempre um conteúdo manifesto – vinculado à realidade factual – e um conteúdo latente, de cunho simbólico. Em Janela indiscreta, a trama manifesta é a de um fotógrafo, Jefferies, que está imobilizado numa cadeira de rodas e que, aparentemente por não ter o que fazer, começa a espiar seus vizinhos de prédio. Lá pelas tantas, uma moradora do apartamento em frente ao seu desaparece, e ele passa a imaginar que o marido dessa mulher a havia matado. Auxiliado pela namorada e por sua enfermeira, passa então a investigar o pretenso assassinato, até que toda a trama se esclareça.

Na tentativa de estabelecer uma hipótese sobre qual seria a trama latente (simbólica) deste filme, proponho que utilizemos a técnica hitchcockiana e levemos em conta, principalmente, as imagens que o próprio Hitchcock nos apresenta. No início da ação, ele nos mostra o fotógrafo Jefferies e o cenário que ele avista a partir da janela do seu apartamento (que no seu formato retangular em muito lembra a pantalha de um cinema), como se Hitchcock estivesse nos dizendo: agora nós iremos nos colocar na pele de um fotógrafo bisbilhoteiro e dele seremos cúmplices durante o filme que ele irá realizar. Assim, ao mesmo tempo em que Jefferies, por identificação projetiva, representa o diretor do filme, sentado numa cadeira atrás de uma câmera e criando um enredo a partir da sua imaginação, ele representa também a todos nós espectadores, que ficamos expostos aos acontecimentos que vão brotando em cena. Creio que é a partir daí que o diretor nos captura e passa a despertar em nós os mais diferentes sentimentos. Deixamos de ser meros espectadores e passamos a ser participantes ativos de uma história de suspense: é a magia da identificação projetiva entrando em cena.

Lembram das funções da identificação projetiva? Comunicar alguma coisa a alguém e tentar livrar-se de algo interno indesejável, lembram? O que, então, o diretor busca nos comunicar através do ato de projetar-se no personagem de James Stewart? Do que é que ele parece querer livrar-se ao fazer isso? Talvez Sidney Gottlieb (2), um estudioso da obra de Hitchcock, possa nos auxiliar neste sentido. Segundo este autor, o relacionamento do famoso diretor com sua mulher, Alma, era algo () complexo, conturbado e perturbador.  Para ele [Gottlieb], o contexto do relacionamento do casal era regido pelos (…) mais profundos temores e receios [de parte de Hitchcock], alguns deles óbvios e familiares (como o medo da polícia e o de ficar sozinho), assim como por outros temores mais sutis e disfarçados, como o de ser analisado e ‘demolido’ pela mulher. Acrescente-se a isso a notória dificuldade do diretor para relacionar-se com as atrizes que dirigia, a ponto de tratá-las, às vezes, com violência e até com certa crueldade, como se estivesse frente a um poderoso e implacável inimigo. A partir daí, não é difícil imaginar que Hitchcock, através de Janela indiscreta, talvez pudesse estar nos contando não só a história manifesta de um fotógrafo bisbilhoteiro, mas estivesse também nos falando, via identificação projetiva, de um temor inconsciente que nutria pela figura feminina. Quem sabe a realização deste filme pudesse servir também para livrá-lo, pelo menos temporariamente, de um temor irracional que ficaria projetado, inicialmente, no personagem Jefferies e, depois, em nós, espectadores?

O filme começa mostrando um homem numa cadeira de rodas, com uma perna engessada. A entrada em cena da sua enfermeira nos revela o conteúdo simbólico desta imagem, quando ela comenta, em tom de brincadeira: você tem uma deficiência hormonal. As beldades aí em frente não fizeram a sua temperatura subir. É como se o diretor, através desta personagem, nos dissesse: observem, este membro engessado não é apenas uma perna. Ele representa também um estado de engessamento mental, como alguém que está paralisado de medo, medo das mulheres, das beldades que deveriam fazer a temperatura dele subir. O temor de Jefferies parece ficar ainda mais claro quando, mais adiante, ele afirma para a enfermeira que não está pronto para casar com Lisa Fremont porque ela é perfeita demais. Há, então, um corte e a cena seguinte mostra um casal chegando em casa e se beijando. O fotógrafo vira o rosto para não presenciar a cena, como se estivesse nos dizendo: isto é o que realmente me assusta, quando me imagino casando. Como vou poder me aproximar sexualmente de uma mulher, se tenho medo delas? Há um novo corte e surge Lisa, uma bela mulher que está visivelmente interessada em Jefferies. Ele tenta evitá-la, desviando sua atenção para o apartamento de uma mulher solitária que finge estar jantando com seu parceiro. Por identificação projetiva, o diretor está, agora, nos mostrando a solidão em que vive o fotógrafo/diretor e o desejo que ele também nutre de um dia poder superar esse temor e ter uma parceira. Ele brinda, então, à vizinha solitária e a expressão de seu rosto parece nos dizer: estamos na mesma, minha cara. Diferente de você, estou acompanhado, mas, por não poder chegar perto de Lisa, eu, como você, acabo ficando sozinho. Na mente do fotógrafo/diretor, Lisa é tida como uma ameaça e, em função disso, ela precisa ser, de alguma maneira, silenciada. E Jefferies tenta desesperadamente fazer isto, desviando o olhar para a janela. Aliás, a mulher silenciada é um tema recorrente nos filmes de Hitchcock, como fica explícito em O homem que sabia demais e Psicose, por exemplo. No entanto, ao olhar para fora, o conflito interno de Jefferies não se desvanece e o que ele passa a enxergar na vizinhança fica impregnado de ansiedades próprias deste conflito. Assim, sem qualquer amparo substancial da realidade, ele passa a imaginar que o vizinho do apartamento em frente teria esquartejado a mulher para poder se ver livre dela. Naquele momento, por identificação projetiva, o vizinho passou a ser depositário do temor do fotógrafo/diretor em relação às mulheres e o executor do seu desejo de silenciá-las de uma vez por todas.

Parece que a culpa decorrente do desejo de livrar-se de Lisa, e da fantasia de ter realizado este desejo através do vizinho que mata a mulher, gerou em Jefferies uma crescente necessidade de punição. Para prover o alívio dessa culpa, sai em busca de um castigo de igual intensidade e com idênticas consequências àquelas decorrentes do ataque perpetrado contra Lisa na sua imaginação. No intuito de alcançar este objetivo, o fotógrafo/diretor deixa, então, algumas pistas que revelam ao violento vizinho a quem ele estava espionando. Felizmente, as consequências deste ato não foram tão terríveis quanto de fato poderiam ter sido: Jefferies não foi esquartejado, mas quebrou mais uma perna na luta com seu vizinho.

No final do filme, parece que a realidade se impõe em relação às fantasias do fotógrafo/diretor. O que vemos, então, é uma cena que em muito lembra a atitude de um casal, depois de ter desfrutado de uma relação sexual prazerosa. Ela confortavelmente deitada na cama, com um sorriso de satisfação nos lábios, entretendo-se com uma revista e ele de olhos fechados, relaxado na cadeira e também sorrindo, depois de ter se permitido enfrentar ‘a fera’ e dar-se conta que se tratava apenas de uma mulher, uma bela mulher. Jefferies, agora, pode fechar os olhos e, sossegadamente, sonhar com a experiência sexual gratificante que teve com a companheira. Ele não precisa mais, pelo menos não neste momento, olhar para fora, projetar seus temores, como na história do nubente assustado.

Penso que Janela indiscreta nos sensibiliza porque mexe com sentimentos e fantasias inconscientes que habitam nosso mundo interno, pois as cenas que Jefferies presenciou nos apartamentos em frente ao seu podem muito bem representar parte daquilo que se passa dentro de cada um de nós: nossos medos irracionais (como o medo e a ira do diretor/ fotógrafo projetado no vizinho assassino), nossos momentos de ansiedade e solidão (como aqueles que ficaram depositados na mulher solitária), nossos momentos de falta de criatividade (como os que foram atribuídos ao músico sem inspiração), nossos devaneios sexuais (como aqueles representados pelo casalzinho em lua-de-mel e pela bailarina libidinosa) e as tristezas que a vida nos reserva (como aquela simbolizada pela morte do cãozinho do casal sem filhos).

Como já disse Truffaut (1), ao referir-se a Kafka, Dostoiévski, Poe e Hitchcock, Esses artistas da ansiedade não podem evidentemente nos ajudar a viver, pois que viver já lhes é difícil, mas sua missão é fazer-nos partilhar suas obsessões. Nisso, mesmo que eventualmente sem querer, eles nos ajudam a nos conhecer melhor, o que constitui um objetivo fundamental da obra de arte.

 

 

Ficha técnica do filme 

Título original: Rear window

Roteirista: John Michael Hayes. Roteiro adaptado de uma novela de Cornel Woolrich (William Irish).

Produtor e diretor: Alfred Hitchcock.

Fotografia: Robert Burks.

Música: Franz Waxman.

Distribuidora: Paramount.

Elenco principal: James Stewart, Grace Kelly, Wendel Corey, Thelma Ritter e Raymond Burr.

 

Bibliografia consultada

 

1 – Truffaut F. Hitchcock/Truffaut: entrevistas. São Paulo: Brasiliense; 1986.

2 – Gottlieb S, editor. Hitchcock por Hitchcock: coletânea de textos e entrevistas. Rio de Janeiro: Imago; 1998.

3 – Beylie C. As obras-primas do cinema. São Paulo: Martins Fontes; 1991.

4 – Spoto D. The dark side of genius: the life of Alfred Hitchcock. New York: Ballantine Books; 1983.

5 – Tulard J. Dicionário de cinema: os diretores. Porto Alegre: L± 1996.

 

 


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