O imaginário no cinema e na psicanálise
O IMAGINÁRIO NO CINEMA E NA PSICANÁLISE *
Antonio Carlos J. Pires
* Texto apresentado no ciclo O imaginário no cinema e na psicanálise, promovido pela Sociedade Psicanalítica de P. Alegre e realizado na Cinemateca Paulo Amorim – Casa de Cultura Mário Quintana, em outubro de 1996.
Quando recebi o convite para dizer algumas palavras, esta noite, sobre O imaginário no cinema e na psicanálise, lembrei-me de imediato que a noção de imaginário pertence a Lacan, um famoso psicanalista francês cuja obra, confesso, não me é muito familiar. Pensando na boa oportunidade que me surgira para estudar este autor, revisei basicamente dois trabalhos: A fase do espelho como formadora da função do ego, tal como se apresenta a nós na experiência analítica – uma comunicação apresentada por Lacan, durante o XVI Congresso Internacional de Psicanálise, em Zurich, em 17 de julho de 1949 – e A tópica do imaginário, um trabalho escrito pelo mestre francês em 24 de fevereiro de 1954 e que faz parte do tomo 1° da obra intitulada O seminário de Jacques Lacan.
A noção de imaginário parece estar intimamente ligada à assim chamada fase do espelho, que enfatiza a ideia de que o ego se estruturaria a partir da imagem do seu semelhante, uma imagem especular. Para Lacan, o imaginário poderia ser entendido, então, como uma relação dual baseada na imagem de um semelhante, ou como uma relação fundamentalmente narcísica do indivíduo com ele próprio.
Ao terminar de redigir esta parte do texto, reli o que havia escrito e pensei: ‘imagem de um semelhante, relação narcísica… Creio que este tipo de linguagem não é o mais adequado para este momento’. Logo percebi, então, que se seguisse nesta linha, ao chegar ao final da minha exposição, restariam na platéia, na melhor das hipóteses, apenas minha mulher, um tanto inquieta, alguns amigos solidários, mas nem por isso menos preocupados e umas duas ou três pessoas… dormindo. Diante da possibilidade de que esta imaginária situação se tornasse realidade na noite de hoje, resolvi abrir mão do imaginário lacaniano, até porque temia que meu amor próprio talvez pudesse se ressentir com a cena da plateia atônito-sonolenta e deixei minha imaginação correr solta.
Lembrei-me, então, de uma longínqua tarde de 1954, quando fui pela primeira vez ao cinema, guiado pela mão de meu pai. Naquela época, eu tinha cinco anos e uma curiosidade que equivalia a cinquenta anos de espera para ver o que, até então, só conhecia ‘de ouvido’. Entramos no cine Ópera, ali na Rua da Praia, no edifício da Companhia de Seguros Porto-alegrense e, já na entrada, deparei-me com um tapete vermelho, daqueles do tipo ‘classudo’, que nos conduziu até a sala de espera. Meu coração começou a bater mais rapidamente; estava chegando o momento! Fiz questão de experimentar as poltronas macias da sala de espera por alguns instantes e, depois, entramos na sala mágica. Mais tapetes vermelhos nos conduziram aos nossos lugares. Sentamos e, de repente, lá estava nada mais nada menos do que o baleiro cantarolando a ária do ‘baleiro/balas’. É fato que nunca fui muito dado a este hábito, mas, naquele dia, não resisti e ‘tracei’ um pacote de balas azedinhas.
De repente, começaram a surgir sons graves e duradouros, imitando as batidas de um carrilhão, que prenunciavam o espetáculo. As luzes se apagaram e a tela enorme e branca se encheu de luz e imagens. Tinha começado!
Meu pai já havia me alertado que, antes do filme propriamente dito, iríamos assistir a um ‘jornal’, pois era assim que se chamavam os noticiários levados no cinema naquela época. O narrador do ‘jornal’, com uma voz grave, falava na morte de um homem muito importante, um político, ‘um tal Getúlio Vargas’. Enquanto isto, a câmera mostrava uma multidão nas ruas e, quando os rostos daquelas pessoas que faziam parte da massa eram enquadrados num close, o que se via era tristeza e desolamento. Aquilo, sem que eu soubesse por que, me tocou profundamente. Acho que meu pai percebeu minha comoção, pois, naquela hora, ele me afagou a cabeça com ternura.
Refeito deste forte impacto, assisti ao filme daquela tarde no cine Ópera, como se estivesse participando do maior espetáculo da terra. Não me recordo do título do filme, mas marcou-me uma cena triste em que dois personagens se despediam, dando a entender que nunca mais veriam um ao outro. De novo, a emoção.
Quando saímos do cinema, eu estava extasiado com tudo aquilo que presenciara e, desde então, esta sensação de arrebatamento sempre se reproduz, quando assisto a um bom filme.
Mais tarde, compreendi que as cenas que mais me tocaram naquela tarde no cinema estavam intimamente ligadas à tristeza que, sem me dar conta, eu também sentia naquele momento pela perda de minha avó paterna, a única avó a quem tive a felicidade de conhecer. Mas esta é outra história…
O que quis ilustrar com tudo isto é que o imaginário também pode ser concebido como tudo aquilo que faz parte da nossa imaginação, do nosso mundo de fantasia, como diria Melanie Klein, uma analista de exceção que, no período de 1919 a 1960, ampliou significativamente as contribuições de Freud, o pai da psicanálise.
Pois parece que tanto os psicanalistas quanto os cineastas vivem da possibilidade de entrar em contato com o imaginário, ainda que com objetivos diferentes. Enquanto o analista procura dar um significado aos conteúdos inconscientes que emergem na sessão analítica com seu paciente, o cineasta se vale destes conteúdos e os transpõe para a tela, sob a forma de imagens e palavras, com o objetivo de causar um impacto estético. Em ambos os casos, é o imaginário que nos permite sonhar que estamos voando ou que propicia a criação de um filme chamado Super-Homem, de Richard Donner. É ele quem nos dá acesso à possibilidade de brincarmos de ‘mocinho’ ou quem dá origem a um roteiro de um No tempo das diligências, de John Ford. É a partir do imaginário que podemos sonhar com um amor impossível e é também a partir dele que surge a ideia para filmar um Casa Blanca, de Michael Curtiz. É ele quem nos faz, às vezes, temer o desconhecido projetado num quarto escuro e que, ao mesmo tempo, pode servir de mote para um suspense hitchcockiano de primeira. É no imaginário onde criamos uma vitória devastadora para a próxima partida contra o time de futebol daqueles caras que nos derrotaram na última vez e é também o lugar onde o personagem Salieri, do Amadeus de Milos Forman, se remói de inveja de um Mozart mais bem sucedido que ele.
Aliás, o interesse da psicanálise pelo cinema só não é tão antigo quanto a criação dos irmãos Auguste e Louis Lumière e de Thomas Edison, porque eles começaram seu trabalho praticamente na mesma época em que nascia a psicanálise. Enquanto os irmãos Lumière filmavam a famosa Saída da fábrica, em 1895, Freud estava às voltas com o término do seu famoso ensaio Projeto para uma psicologia científica. Levou algum tempo até que o cinema e a psicanálise se tornassem adultos, se conhecessem, se apaixonassem e passassem a ter um convívio harmonioso, que perdura até os dias de hoje. Uma prova deste relacionamento, que parece ter se tornado bastante profícuo para as duas partes envolvidas é, de um lado, o número significativo de publicações psicanalíticas em que se encontram cenas de filmes para ilustrar algum aspecto teórico ou técnico da psicanálise e, de outro lado, a nítida influência que a psicanálise exerceu sobre alguns diretores como, por exemplo, Ingmar Bergman. Não é por acaso que temos, na noite de hoje, dois cineastas, um crítico de cinema e um psicanalista trocando ideias com esta platéia sobre o imaginário no cinema e na psicanálise. Desconheço o que pensam meus companheiros de mesa sobre este tema, e não sei se tiveram uma experiência semelhante à minha, ao verem seu primeiro filme. No entanto, sem medo de errar, posso afirmar que, como eu, antes de serem cineastas ou críticos, eles são amantes da sétima arte, o que gera entre nós uma saudável cumplicidade que sobrepuja nossas diferenças.
Como pessoa, como psicanalista, sou eternamente grato a todos aqueles que trabalharam e trabalham com cinema, pois me propiciaram, no passado, emoções inesquecíveis em uma sala de projeção ao lado de meu pai e seguem me propiciando, hoje, renovadas oportunidades de identificação com as alegrias e tristezas dos personagens dos filmes, além de me permitir que eu exercite minha mente como psicanalista, tentando compreender um pouco melhor a mim mesmo e a meus pacientes.
Muito obrigado ao cinema por tudo isso.
FIM
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