Psicanálise e Cultura

Pensamento Analítico


Pensamento Analítico

Thomas H. Ogden[1]

Prelúdio, por Idete Zimerman Bizzi: Vivências catastróficas no RS e a escuta do Dr.Ogden

            Quinta-feira, cedo pela manhã. Sol pleno, vento frio, e a cidade de Porto Alegre está alagada há 11 dias. O Rio Grande do Sul enfrenta o maior desastre ambiental de sua história. Milhares fora de suas casas, em abrigos. Ainda contabilizamos mortos, desaparecidos. Os ruídos dos helicópteros não cessam, resgatando ou tentando resgatar pessoas e animais ilhados. O impensável chegou; não pediu licença, não se intimidou com a rotina, com compromissos, amores, contendas, com o comezinho, enfim. Só chegou. Após cancelar minha agenda e me dedicar, por dia,s a ações comunitárias, retomo algo da rotina habitual. Em meu consultório, organizando o início de uma jornada de trabalho comprida, grata por cuidar de tantos, percebo, num canto escondido, o constrangimento pedindo atenção, apontando-me meu bem estar e o amor por minha profissão. “Psicanálise numa hora dessas?”, ele parece estar dizendo. Não saberia bem responder, caso o meu constrangimento articulasse abertamente a pergunta. Como nada ouço, nada digo, e deixo os pensamentos inconscientes entenderem-se entre si, lá no fundo; prestarei atenção neles mais tarde, quando e se a gritaria ficar muito grande.

            A manhã se esvai, e, a cada intervalo que tenho, assaltam-me lembranças do dia anterior, quando passo por um dos abrigos em Porto Alegre; verifico, no papel escrito a mão e fixado no parede com fita crepe, as necessidades mais urgentes do dia: arroz, lentilha, fraldas, café, sabonete… E, então, minha ida ao supermercado, distraída e determinada a comprar os itens listados, manobrando o carro no estacionamento, e, ouvindo, como um mantra, a pergunta insistente, lá no fundo: “O que nos aguarda, nessa nossa terra?” Tento não pensar e não temer.

            Quinta-feira, meio-dia. Encontro o rosto tranqüilo e generoso do Dr. Ogden, pelo computador, para uma supervisão, e conto a ele algo de nossas agruras no RS. À tristeza de repisar as dificuldades e dramas impensáveis, vai-se somando um acalento, uma gratidão pelo interesse e cuidado sinceros do Dr. Ogden. Confesso a ele minha sensação de impotência, a desconfortável noção de que tudo o que se faça para a ajudar é pouco, e o desconcertante questionamento de se, nessa hora, a psicanálise tem espaço. Busco, em vão, por algum tempo, uma palavra que defina como, às vezes, a psicanálise me parece, em meio à catástrofe…”insuficiente”? “Não”, reage imediatamente o Dr. Ogden: “A psicanálise permite que pensemos. Em meio a catástrofes, não é possível pensar, as pessoas param de pensar. A psicanálise é fundamental”. Ufa. Era tudo o que eu precisava ouvir. 

            Dr. Ogden menciona, então, um pequeno texto sobre “pensamento” que elaborou, recentemente, a pedido de um colega Israelense, o qual imagina que eu vá gostar de ler. Gostei muito. Gostei tanto que pedi a ele para compartilhar com os colegas do RS, pedido a que ele acedeu. Traduzimos, eu e meu filho, Marcelo, o texto de Thomas H. Ogden, inédito em nosso meio, intitulado “Pensamento Analítico”, que traz alento, inspiração, e reitera a importância da psicanálise mesmo, e principalmente, nos piores momentos da humanidade.

 

 Pensamento Analítico

Thomas H Ogden

Psicanálise é uma empreitada humanista, a qual se ocupa daquilo que nos faz humanos. É o estudo do que nos motiva, de como nossa experiência nos modifica, e de como nos relacionamos com outros indivíduos, com grupos e com culturas nas quais vivemos, e nas quais outros vivem. Psicanálise não prescreve comportamento; ela cria um processo e é um processo criativo. É um processo no qual uma pessoa vem a se conhecer melhor, e vem a experenciar a vida de uma forma que seja sentida como mais real, mais vívida, mais pessoal, mais imaginativa, mais compassiva.

Vida humana é o que há de importância precípua para mim. No setting analítico, isso envolve tanto auxiliar o paciente a recuperar um sua vida não vivida quanto criar nova vida para si e para aqueles a seu redor. Este é o meu primeiro princípio da psicanálise: a valorização do caráter sagrado da vida humana.

Meu segundo princípio como psicanalista é uma premissa a qual eu penso como um equivalente ao princípio de “primeiro, não prejudicar” do juramento de Hipócrates. Na psicanálise clínica, isso significa o dever de respeitar as defesas do paciente, visto que são essas as formas de auto-proteção que o ajudaram e ajudam a sobreviver. Deve-se atentar, cuidadosamente, aos limites do que o paciente consegue suportar.

Meu terceiro princípio da psicanálise envolve a importância central de reconhecer o paciente como alguém que ele ou ela de fato é. Ninguém pode crescer por conta própria. Vir a ser requer ser visto por outros. Sem o reconhecimento alheio, o indivíduo está confinado a seu mundo auto-delimitado.

O quarto dos meus princípios analíticos envolve a idéia de que sonhar e brincar são inerentemente terapêuticos. São os principais meios pelos quais a mudança psíquica ocorre, tanto dentro quanto fora do setting analítico. No consultório, paciente e analista envolvem-se com sonhar e brincar no contexto de um vínculo no qual eles estão, paradoxalmente, sozinhos e acompanhados um do outro.

O quinto dentre os meus princípios da psicanálise envolve valorizar o que o indivíduo oferece e recebe em seus vínculos com outros membros da própria família, com amigos, com a própria comunidade, com a própria cultura e com as culturas de outras pessoas.

Pensamento psicanalítico é uma forma de pensamento que facilita o vir a ser mais pleno do paciente, mas é mais do que isso. Pensamento psicanalítico subjaz todo pensamento criativo. É um processo de pensamento que reconhece que uma profundeza de significados, nunca plenamente canalizada, subjaz os caminhos da compreensão, da experiência e das ações humanas. É um pensamento em que o pensamento paradoxal, o processo primário de pensamento e outras formas de pensamento não-linear têm tanto valor quanto o pensamento estritamente racional, linear, de causa-e-efeito.

Pode-se confiar que um animal, a menos que haja interferência humana, faça o que ele está geneticamente equipado a fazer: uma leoa caça uma impala não porque ela odeia impalas, mas porque é assim que ela alimenta a si e a seus filhotes. A leoa não está sendo odiosa, ela está sendo uma leoa.

Ser humano nos torna imputáveis de maneiras que outros animais não o são. Nós somos responsáveis pela dor que causamos ao outro e a nós mesmos. Ser humano requer que se aja de uma forma que poderia ser denominada de “em boa consciência”. Quando eu digo “em boa consciência”, eu me refiro àquilo que nos parece ser o certo após enxergarmos nossos pensamentos e conduta sob múltiplas perspectivas, incluindo as perspectivas daqueles que de nós discordam, e após termos nos consultado com outras pessoas, no que tange a situação com a qual lidamos.

Como alguém começa a agir em boa consciência, quando se torna ‘não mais’ claro o que isso significa? Eu não tenho uma resposta a essa pergunta, mas eu tenho perguntas que requerem respostas ponderadas. Como alguém risca uma linha na areia e declara que já basta disso? Como é que alguém cria um lugar dentro de si, um estado de espírito, em que se pode começar a pensar de uma forma que é um pensar genuíno , em oposição a um pensar nacionalista, religioso, capitalista, e outras formas de ideologia? Como alguém se compromete a trabalhar com aqueles cujo pensamento parece ser diametralmente oposto ao seu? Será que existem gestos possíveis, capazes de fazer soar um acorde diverso do acorde que se vem tocando? Será que existem pessoas a quem se respeita, cujas formas de pensar e responder possam auxiliar a pensar e responder de formas mais frutíferas, mais humanas? A meu ver, desqualificar essas questões, e tomá-las como ingênuas, inviáveis ou impossíveis não está em boa consciência, não reflete um pensamento analítico são.

 

Tradução: Idete Zimerman Bizzi[2] e Marcelo Zimerman Bizzi[3]

 

[1] Psicanalista da IPA, São Francisco, EUA, autor de mais de uma dezena de livros sobre teoria e técnica em psicanálise, além de três livros de ficção. Agraciado com o Sigourney Award, em 2012, por suas contribuições à psicanálise.

[2] Psicanalista, membro efetivo, assistente de ensino do Instituto da SPPA; professora e supervisora do CEPOA, supervisora de psicoterapia de orientação analítica nas Residências de Psiquiatria do HPV e HCPA.

[3] Médico, cursista do primeiro ano de psiquiatria da Fundação Universitária Mário Martins (FUMM).

 


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