Psicanálise e Cultura

Sobre os mistérios da música   

Sobre os mistérios da música                                                                                                                                                                                                                                                                             Antonio Carlos J. Pires

                                           Depois do silêncio, aquilo que mais aproximadamente exprime                                                                        o inexprimível é a música. (Aldous Huxley, Music at night, 1931, p.17).

                                          

                Freud nunca chegou a ocupar-se com a compreensão do sentido da música. Ele sempre teve importantes restrições em relação a essa forma de expressão artística, a ponto até de vangloriar-se de não ser capaz de cantar afinadamente. Ao longo de sua vida, seu parco contato com a manifestação musical limitou-se à audição de algumas poucas óperas, onde apenas as palavras unidas à ação dramática chegaram a lhe propiciar algum prazer.

Depois de Freud, muito se escreveu sobre o significado da música. Assim, apenas para citar alguns exemplos, essa arte já foi entendida como expressão da busca inconsciente de um estado narcísico primitivo, um sentimento oceânico de fusão com um objeto ideal que evoca um estado de prazer puro (Sterba, 1946). Outros autores chegaram a propor que a produção musical seria uma espécie de exteriorização catártica de pulsões primitivas, um fenômeno relacionado à tensão crescente de pulsões e sua consequente descarga (Racker, 1952). Além disso, essa forma de manifestação artística também foi concebida como um objeto transicional, uma maneira de tentar aliviar ansiedades e tensões decorrentes do sentimento de solidão (McDonald, 1970). Por outro lado, foram publicados textos sobre a música entendendo-a como uma forma primitiva de comunicação (Rechardt, 1987) capaz de induzir diferentes estados emocionais que se reportam a vivências emocionais primitivas inconscientes. Todas estas teorias, assim como outras que buscam explorar o sentido da música, são instigantes e fazem sentido, mas não chegaram a explicar, de um modo mais convincente, o impacto emocional que uma composição musical pode ter na mente de um ouvinte. Até agora pouco se sabe sobre as razões de uma canção desconhecida despertar variadas emoções, e de distintas intensidades, quando apresentada a um grupo de diferentes indivíduos. Persiste um mistério em torno dessa questão, apesar do esforço de alguns analistas em desvendá-lo.

Um dos textos mais interessantes a que tive acesso sobre esse tema foi A música e o músico, escrito por Heinrich Racker em 1957. Para ele, a criação de sons musicais estaria primariamente relacionada ao ruído da própria voz do bebê, o que, mais adiante, também daria origem ao som dos instrumentos. Segundo esse autor, tudo se iniciaria com o ruído do grito do nascimento, através do qual o bebê buscaria religar-se à mãe de quem foi separado. Assim, a música, originalmente, seria produto da transformação desse grito em melodia. Nesse mesmo trabalho, Racker também comenta que é possível observar-se mecanismos semelhantes nos processos de elaboração musical e onírica, uma vez que esses dois procedimentos criativos são produtos do inconsciente e participantes do mundo da ilusão. Ideia semelhante foi sustentada por Meltzer (1984), em seu livro Vida onírica, quando afirma que existe uma significativa similitude entre a linguagem dos sonhos, das artes plásticas e da música, que estão sempre querendo comunicar alguma coisa pertinente ao mundo interno do seu criador. Referindo-se especificamente à linguagem dos sonhos, ele sugere que somos incapazes de compreender cabalmente o significado de qualquer linguagem. E com o linguajar musical não é diferente, uma vez que a música faz parte daquilo que não pode ser dito e precisa ser mostrado (Wittgenstein, 1958).

Para Meltzer (Ibid.), a dificuldade que alguns analistas experimentam na apreensão do significado de um sonho relatado em uma sessão passa pela necessidade de o analista precisar ‘ler a linguagem onírica’, como se o sonho fosse uma língua estrangeira que necessitasse ser ‘traduzida’. Em vez de se permitir sonhar o sonho do analisando, o analista, preocupado com a relação causa/efeito, busca ‘traduzir’, cobrir de lógica, o conteúdo transmitido, e acaba assim afastando-se do sentido daquilo que o paciente deseja comunicar. Para poder acessar a produção artística do mundo interno de um indivíduo, seja ela um sonho ou uma música, o interlocutor precisa abrir mão do desejo de desvendar os mistérios que dela fazem parte, pelo menos num primeiro momento, dispondo-se apenas a vivenciar emocionalmente o que está sendo informado. Só a partir daí ele terá alguma chance de compreender, através das palavras, o que emana do mundo interno daquele indivíduo. Segundo Meltzer (Ibid.), (…) precisamos aprender a linguagem [dos sonhos] (…) para acessar essa eloquente música na qual se encontra o núcleo do mistério de nós mesmos (p.101).

            Ao falar sobre a contemplação da cena primária, em A apreensão do belo, Meltzer (1988) afirma que a privacidade e o mistério que permeiam esse ‘sítio arqueológico’, onde se encontram os pais em um coito criativo, precisam ser preservados, e que tal postura só pode ser alcançada a partir do amor e do respeito do observador desse cenário. Diz ainda que (…) quando falta o amor, e o mistério e a privacidade são vistos como forma de poder, a câmara [o quarto dos pais] torna-se uma fortaleza, o sítio de uma catástrofe () (p.113). É justamente nesse espaço de intercâmbio criativo que se gera todo o significado, e que nos permite ficar extasiados frente ao que há de belo no mundo e, em especial, frente à arte.

Talvez nós, analistas, no afã de tentar ler e decifrar os mistérios da música, nem sempre nos permitimos abordá-la da forma como Meltzer sugere que nos aproximemos dos sonhos de nossos analisandos. Parece que o desafio que a música oferece para quem deseja decifrá-la é o de mostrar ao seu perscrutador que alguns de seus mistérios são intangíveis e que, como tal, nunca poderão ser totalmente transpostos em palavras.

          Como já disse o maestro Tom Jobim, a linguagem da música se basta e, para desfrutar de sua magia, de seus mistérios, precisamos ter a mente suficientemente aberta para o que é desconhecido e humildade para reconhecermos nossa incapacidade de apreendê-la na sua totalidade.

 

Referências bibliográficas

McDONALD, M. (1970). Transitional tunes and musical development. Psychoanal. Study Child, v.25, p.503-520.

MELTZER, D.  (1984). Vida onírica: Una revisión de la teoría y de la técnica psicoanalítica. Madrid: Tecnipublicaciones S.A., 1987.

____________ (1988). A apreensão do belo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995.

RACKER, H. (1952). Aportación al psicoanálisis de la música. Revista de Psicoanálisis, v.9, n.1, p.3-29.

____________  (1957). La música y el músico. In: Racker, H. Psionálisis del espíritu. Buenos Aires: Paidós, 1965, p.93-118.

RECHARDT, E. (1987). Experiencing music. Psychoanal. Study Child, v.42, p.511-530.

STERBA, R. (1946). Aproximación al problema del proceso musical. Revista de Psicoanálisis, v.4, n.2, p.293-300.

WITTGENSTEIN, L. (1958). The blue and brown books – Preliminary studies for the Philosophical investigations. Oxford: Blackwell Publishers Ltd.

 


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