Psicanálise e Cultura

Literatura e Psicanálise

…no íntimo, somos poetas, e só com o último homem morrerá o último poeta.

                                                                    Freud – Escritores criativos e devaneios – 1908 [1907] 

A psicanálise, desde o seu início, foi generosamente amparada pela literatura. Assim, não parece ter sido por mero acaso que o primeiro livro escrito pelo então promissor neurologista Sigmund Freud foi intitulado A afasia (uma patologia que afeta a capacidade do indivíduo se expressar e compreender a linguagem escrita e falada). A escolha do referido tema já dava alguns indícios do interesse do fundador da psicanálise pela linguagem. Aliás, seu fascínio pela arte de escrever pode ser constatado a partir da frequência com que Freud recorreu a obras clássicas para nelas buscar ideias que ilustrassem suas teorias. Assim, lançou mão de Sófocles, Shakespeare, Cervantes, Rabelais, Goethe e Schiller, entre outros, para extrair destas leituras expressões como Édipo, narcisismo, sadismo, masoquismo etc, termos estes que, mais tarde, viriam a ser incorporados definitivamente ao linguajar psicanalítico. De seu poeta favorito, Friedrich Schiller, por exemplo, Freud utilizou a ideia de fome e amor como a verdadeira filosofia para ilustrar a teoria das pulsões: a fome representava as pulsões do ego, a serviço da sobrevivência do indivíduo, e o amor era o representante das pulsões sexuais, destinadas à sobrevivência da espécie. 

Freud acreditava tanto na influência enriquecedora da literatura em relação à psicanálise que, em uma carta a Fliess, chegou a dizer que esperava encontrar nas obras literárias (…) palavras para muita coisa que permanece muda em mim. Em outra ocasião, ao tecer algumas considerações sobre a Gradiva, de W. Jensen, afirmou que Os escritores de imaginação são valiosos colegas, e seu testemunho deve ser levado em conta. 

Literatura e psicanálise têm em comum a difícil tarefa de perscrutar a alma humana, diferindo na maneira como fazem isso. Elas têm como ponto de contato a capacidade de fantasiar, inerente ao ser humano, e o amor pela verdade, ainda que inatingível em sua plenitude. A psicanálise aborda a profundidade da mente, buscando o entendimento e resolução dos conflitos, enquanto que a literatura também persegue este contato, só que em busca do impacto estético. A psicanálise reduz a metáfora a um contexto mais literal, enquanto que a poesia e a prosa lançam mão dessa figura de linguagem na busca da apreensão da beleza. Por outro lado, o ato de escrever possibilita ao autor expressar suas vivências emocionais de um modo criativo, a partir do contato com seu mundo interno, e, ao mesmo tempo, possibilita a reflexão e certo grau de compreensão sobre essas vivências. Ao leitor fica facultada a possibilidade de se identificar com estas experiências e ampliar seu conhecimento sobre a condição humana. 

Um escritor representante do romantismo chamado Börne escreveu, certa ocasião, sobre Como chegar a ser um escritor original em três dias, e afirmou que, para alcançar tal objetivo, seria necessário pegar () folhas de papel e nelas escrever, durante três dias inteiros e seguidos, sem falsidade ou hipocrisia, tudo o que se passa em sua cabeça. Escreva o que pensa de si mesmo, da sua mulher, da guerra turca, de Goethe, do processo 

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* Texto publicado no Boletim da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, em dezembro de 2003.  

** Membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.

criminal de Fonk, do juízo final, dos seus superiores; uma vez passados  os  três dias, você  ficará  admirado  em  relação  aos  pensamentos  novos  e  inauditos que  você  teve.  Nisso

reside a arte de converter-se, em três dias, em um escritor original. É certo que, para que esta receita funcione, se deve a ela acrescentar uma boa dose de talento e de domínio da linguagem. Mas o importante é que Börne pôs em destaque a ideia de que o escritor precisa ter a capacidade de tomar contato, da maneira mais livre possível, com seu mundo interno e com o mundo com o qual se relaciona. Mas esta não é também uma pré-condição para que um analista possa desempenhar suas funções? Não é a partir deste modelo que se alcança a compreensão do analisando?   

Em 1930, Freud recebeu o prêmio Goethe de literatura. Victor Von Weizsäcker, ao comentar o estilo com que o autor premiado escrevia, apontou mais uma semelhança entre a tarefa do escritor e a do psicanalista, dizendo que o modo de escrever de Freud era guiado (…) por princípios artísticos () limitação rigorosa das palavras, leveza, certa graça que desdenha da ênfase e dos superlativos, uma lógica inerente a nossa cultura, fuga das metáforas e adornos, equilíbrio entre a objetividade científica e a humana subjetividade. E não é dessa maneira que um analista deve interpretar: com concisão, leveza e sobriedade? Como formular adequadamente uma interpretação, sem levar em conta estes princípios artísticos enunciados por Von Weizsäcker? 

No ambiente literário, e mesmo entre alguns analistas, há quem critique Freud, dizendo que, quando ele examinava uma obra literária à luz da psicanálise, acabava por negligenciar a forma, o estilo, em favor do conteúdo do texto, tornando assim a sua leitura mais pobre. Há também quem afirme que a busca deliberada de significados ocultos em uma obra literária configura uma atitude reducionista, na medida em que acaba ignorando o 

fato de que toda obra artística é uma expressão mais ampla da cultura. Em relação a isso, Peter Gay lembra que O que Freud deixou foi a ideia de que reduzir a cultura à psicologia parece tão unilateral quanto estudar a cultura deixando-se a psicologia de lado. Penso que a relação entre literatura e psicanálise pode ser compreendida como complementar e geradora de uma condição de realimentação contínua e enriquecimento mútuo. Acredito igualmente que a análise aplicada à literatura também pode se constituir em uma forma de leitura criativa, onde o analista/leitor tem a chance de ir um pouco além da palavra impressa, dela extraindo novos significados. Atualmente, o que se vê é que este tipo de crítica tem sido, infelizmente, alimentado por alguns psicanalistas menos avisados que, ao fazerem leituras fechadas de obras literárias, apresentam-nas como se fossem as únicas e as mais legítimas formas de compreensão de um texto. Parece que, às vezes, esquecemos que a apreensão cabal de uma obra é só uma ilusão, e que somos apenas analistas buscando incessantemente compreender um mundo fantástico que nos é desconhecido, ainda que, para esta fascinante tarefa, tenhamos como aliada a literatura. O que não podemos, creio, é abrir mão de manter intacta esta aliança na procura da verdade, pois nela reside o segredo da sobrevivência da psicanálise como disciplina. No íntimo, acreditamos que somos tão somente homens/poetas/analistas, e que só com o último homem morrerá o último poeta e a psicanálise.

Autor: Antonio Carlos J. Pires


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