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Cátia Olivier Mello
Psicanalista, membro efetivo e diretora cientifica da SPPA
Sem preparos de avisar: uma subjetividade para o futuro
A contemporaneidade trouxe consigo a incerteza, o tempo líquido e a fluidez das relações interpessoais, tudo em uma velocidade alucinante. Ilustração: Freepik
“...tudo o que muda a vida vem quieto no escuro, sem preparos de avisar...” Com esta frase, Riobaldo (protagonista de “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa) reflete sobre aqueles momentos para os quais não há preparação na vida. O ano era 1956.
A contemporaneidade trouxe consigo a incerteza, o tempo líquido e a fluidez das relações interpessoais, tudo em uma velocidade alucinante. São tempos de mudança de paradigma. O sujeito atual executa projetos, realiza tarefas. Do superego da Modernidade provinha uma coação negativa (“não faça isso!, não faça aquilo”). Por sua vez, o ego-ideal da Contemporaneidade exerce uma pressão positiva infinita (“faça isso!, faça aquilo”). Mesmo parecendo que somos livres e protagonistas de nossos projetos, nunca é suficiente o que produzimos, abrindo-se um fosso entre o possível e o impossível. Surge o esgotamento.
Sem tempo para metabolizar a mudança diária subjetiva nas nossas vidas, o conceito de acontecimento, sublinhado pela teoria da complexidade, parece mais apropriado para aparelhar o humano que há em nós. A queda das Torres Gêmeas, a música sinfônica de Haydn ou a pandemia da COVID-19 são exemplos públicos de acontecimentos a partir dos quais o mundo não foi o mesmo, pontos de não-retorno. Tais pontos podem ocorrer também na vida de cada um de nós: uma conversa, um filme, a morte de alguém, apaixonar-se, estes são exemplos de acontecimentos cuja ruptura fará com que não sejamos mais os mesmos. Referimo-nos a eles como “o dia em que eu...”, “a partir daquele momento eu percebi que...”.
A psicanálise contemporânea tem as condições técnicas necessárias para auxiliar o sujeito não somente a perceber os excessos a que pode estar submetido, mas também a lidar com as incertezas e com os acontecimentos integrantes da pele subjetiva do nosso tempo. O analista conversará e enfrentará junto com o seu paciente o novo, quando ele se apresentar em sua vida e no seu tratamento.
Contamos assim, hoje, com um conceito de subjetividade mais fluido, adequado a cada circunstância da vida. Isso não quer dizer que não sigamos tendo uma identidade e um self que se mantém integrado e coeso ao longo da vida. Apenas quer dizer que, para sermos protagonistas de nossas vidas, cada vez mais e como nunca antes, necessitamos de uma subjetividade aparelhada para desfrutar daqueles momentos em que a vida muda “...sem preparos de avisar”.