Freud, Plácido Domingo e a Música
Freud, na sua relação com as artes, flertou com a literatura e com a escultura. Bem menos com a pintura. E a música? Em O Moisés de Michelangelo (1914), afirmou que “…com a música, sou incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber por que sou assim afetado e o que é que me afeta.” Uma indignação de Freud frente ao não saber revelado pela reverberação nos afetos que provoca o objeto artístico. Mais do que isso, é possível pensar que esta atitude de Freud componha parte importante da postura técnica na escuta psicanalítica destes tempos. Neste contexto, do positivismo científico da época surge um exercício da psicanálise fora de sua origem, ou seja, da prática clínica e seus fenômenos: a psicanálise aplicada. Este modelo aparece em Leonardo da Vinci, de 1910, e em outros tantos escritos que seguem, tendo arte, artista, sociedade e antropologia como objetos do exame psicanalítico. Voltando aos afetos inexplicáveis, sabe-se que somente 40 anos depois a instrumentalização clínica da contratransferência começou a dar um rumo, ainda que parcial, à ressonância emocional no analista que resulta do contato com o paciente. Mas foi com Bion que suportar o não saber, descrito como capacidade negativa, tornou-se não só aceitável, mas também condição indispensável ao analista. Ocorre, então, uma profunda mudança paradigmática: a comoção desconhecida diante do objeto, até então incômoda, passa a ser o terreno fértil na prática clínica contemporânea e os analistas estão livres do dilema de Freud. Em 1982, o tenor espanhol Plácido Domingo coordenou uma de suas master classes na Philadelphia. No palco, o aluno, o pianista, o mestre e um auditório lotado por músicos. A plateia, identificada com o aluno, compartilha a aprendizagem. Um jovem tenor canta “Una furtiva lagrima“, ária do personagem Nemorino da ópera L’elisir d’amore, de Donizetti. Domingo ouve atento o fantástico desempenho vocal e faz algumas observações com sua peculiar amabilidade, ciente do peso de suas críticas na carreira do músico. Falando em inglês, Domingo observa que o texto da ária é em italiano e que a plateia de língua inglesa pouco compreende as palavras. Ainda assim, propõe que seu aluno retorne à ária e interprete seu texto de modo que, desta vez, todos saberão do que se trata, mesmo não entendendo as palavras. Para tal, Plácido assinala o fraseado, a dinâmica, a empatia a Nemorino, a expressão facial. A ária é repetida, e o que foi uma espetacular performance vocal torna-se a expressão de afetos indizíveis e de forte impacto emocional. Os apontamentos de Domingo, na sua forma e conteúdo, inspiram uma reflexão que transcende a música. O pensamento clínico contemporâneo em psicanálise tem sido caracterizado por ocupar-se para mais além das palavras. Ou para mais aquém, dependendo do ponto de vista. Configura, entre outras coisas, a instrumentalização de afetos sem nome, sensibilidade ao campo intersubjetivo, oscilação entre momentos de assimetria e simetria na relação paciente-analista, o mistério incognoscível tomando o lugar do segredo, exigindo um analista “poliglota” e uma escuta polissêmica. Eu acrescentaria, polifônica. De igual forma, a música, como visto por Domingo, ocupa-se com forma, respiração, ritmo, consonância e dissonância, melodia da fala, dinâmica, fraseado e com o campo intersubjetivo entre o artista e o público. A música é a arte de natureza mais “gasosa”, visto que não pode ser tocada nem vista e, talvez por isso, existe com eloquência de emoções e multidimensionalidade, ilustrando muito bem um conjunto invisível de fenômenos típicos em nossos consultórios cujo reconhecimento torna-se indispensável na prática atual da psicanálise. Quem já não ouviu uma música e transportou-se à quarta dimensão espaço-tempo, revivendo por instantes o encontro com um antigo objeto amoroso como se fosse aqui e agora? Fenômeno comum da prática psicanalítica nas mentes do analista e do paciente, ou entre os dois, tornando vívida a experiência transferencial e seus correlatos. A fala de paciente e analista possui forma além de conteúdo: possui melodia, ritmo, dinâmica, fraseado; inclui a respiração e o silêncio grávido de sons (Cage). Não foi possível reduzir a música à psicanálise aplicada em Freud pela sua natureza multidimensional. Mais além, ela apresenta-se hoje como um paradigma para refletir sobre a complexidade da clínica. A música aplica-se à psicanálise, e não o seu contrário. Felizmente, Freud falhou em explicar sua comoção ao ouvir música. Na contramão do ideal psicanalítico, teria cometido uma “psicossíntese” se assim o fizesse, um reducionismo de Procusto dada à riqueza desta arte. Pensando novamente sobre a música lírica, observamos que os desenvolvimentos no mundo da ópera articulam algo familiar aos analistas. Segundo o barítono Carlos Rodriguez, no passado da ópera, a ênfase centrava-se na voz e seu domínio técnico. Desde que a voz fosse boa, pouco importava se a Mimi de La Bohème (Puccini) morresse de tuberculose em seu leito interpretada por uma vigorosa soprano de 120kg. A menor ênfase cênica redundava com frequência em incoerência entre personagem e cantor e, ao natural, ilegitimidade. Atualmente, além do canto, a competência e a coerência na ênfase cênica exigem cantor e personagem integrados: a arte aproxima-se da vida real, uma interpretação verdadeira aproxima o contato com o público e legitima as emoções. Para os analistas e os cantores líricos contemporâneos, a tarefa torna-se árdua e rica: a empáfia de divas ou a repetição de clichês não é mais suficiente. Ganhamos num campo mais legítimo e no aprofundamento do invisível mundo dos afetos de pacientes, analistas e no singular resultado deste encontro musical.
Autor: Flávio de Oliveira e Souza
Freud, Plácido Domingo e a Música