Prezado Dr. Kafka
Psicanálise e Cultura
CAFÉ LITERÁRIO
Katia Wagner Radke
Prezado Dr Kafka
Um tempo, uma história, uma geografia nos separam. Enquanto o sr viveu no século XIV, na Europa- Tchecoslováquia, na época- em uma família, como o sr refere, típica de classe média judaica.
Eu vivo no século XXI, no sul da América Latina, em um país chamado Brasil. Porém, temos áreas de aproximação: somos judeus e tanto eu como o sr temos um certo amor pela reflexão. Embora tenhamos escolhido profissões diferentes, a reflexão está presente na literatura, mesmo que o sr diga que essa não foi a sua profissão, ou no Direito, assim como na minha profissão…acho que nem havia me apresentado para o sr: sou psicanalista da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.
Quero aproveitar essa oportunidade para lhe dizer que a sua capacidade para transformar em palavras a sua dor, seu sofrimento e sua opressão me encantam sempre que eu lhe leio. Entendo bem o seu amor pela escrita e sua necessidade de escrever, sorte a sua que teve esse dom (talvez, capacidade…) para a escrita literária. Chego a me contorcer pensando no quanto teria sido maior a sua falta de ilusão, de apego à vida se o senhor não tivesse podido ter escrito tanto sobre o que lhe acometia naqueles tempos tão sombrios desde sua infância.
Perder um irmão aos três anos de idade e o outro quando o sr estava ao redor de seu quarto ano de vida deve ter sido excessivamente sofrido para o sr e para os seus pais. Mas, é bem possível que naquela época em que a Psicanálise recém estava nascendo, pouco se soubesse sobre as repercussões que as dores e lutos familiares têm sobre os pequenos.
Fico aqui pensando e imaginando como deve ter sido difícil o sr ter entendido o que se passou com os seus dois irmãos que nasceram depois do sr para que ambos não tivessem sobrevivido. Vou fazer um pequeno parêntese para lhe falar de um autor psicanalista que viveu aqui perto de onde eu moro,na Argentina, chamado Kancyper, o qual lhe atribuiria o conceito de sobremurriente, contrapondo-o à ideia de sobrevivente, pois o sr sobreviveu a dois irmãos que morreram. Deve ter sido muito difícil e penoso. Fico pensando que naquela idade que o sr estava (3/4 anos), as crianças se sentem muito onipotentes, acreditam que quando sentem ódio, esse ódio é capaz de destruir, de matar. Talvez, o medo que o sr tanto nos conta que lhe habitava, poderia estar relacionado com essas vivências tão terríveis de ter perdido(matado) seus dois irmãos.
Arrisco-me, ousadamente, a pensar que o sr deve ter imaginado que foi algo seu que os impediu de seguirem vivos. Desculpe minha ousadia, mas como trabalho muito com crianças pequenas, sei dos ciúmes e da raiva que a chegada de um irmãozinho acarreta. Acho que a sua culpa, aquela que o senhor tanto nos fala na sua Carta começou por aí…posso imaginar a sua perplexidade aos 3/ 4 anos diante do desaparecimento de seus dois irmãos: perguntando onde estão George e Henrich?
Então, como já lhe falei anteriormente, atendo várias crianças pequenas e conheço um pouco sobre o desenvolvimento emocional infantil, pois hoje a Psicanálise é uma ciência pujante que nos dá ferramentas para isso.
Assim sabemos que as figuras parentais são introjetadas pela criança e orquestram os aspectos morais e os interditos desde o mundo interno da criança. Ao ler Metamorfose, O Veredicto e sua Carta de 1919, encontro-me com seus relatos sobre um pai severo, ríspido e porque não sádico que lhe acuava, despertando-lhe muito medo. Seus personagens Gregor Samsa(Metamorfose) e George( Veredicto…mesmo nome do seu irmão,não, dr Kafka?) mostravam-se aterrorizados. O sr lembra que na pg 25 o sr escreveu que diante de seu choramingo de sede, o seu pai enfurecido lhe trancou sozinho no corredor ou talvez na sacada de sua casa? Que pavor o sr deve ter sentido… uma criança trancada sozinha no escuro…
Se o sr me permite, quero lhe dizer que já havia muito de sua Carta em seus textos anteriores. O sr nos conta que o seu pai parecia se estender transversalmente sobre um mapa mundi aberto…acho que o sr devia se sentir sem espaço, talvez sufocado!
Ah, agora lembrei que o sr se descreveu como hiponcondríaco: com sintomas digestivos e respiratórios, o sr, de fato,foi acometido por tuberculose, uma doença muito grave e letal na época que o sr viveu. Hoje sabemos que algumas doenças se assentam sobre o psíquico. A hipocondria refere-se a uma sensação de ter um corpo danificado, constantemente ameaçado pela morte. Essa sensação, por vezes, refere-se a excessos (dores e ódios) que não puderam ser transformados. Acho que o sr deve ter conhecido Freud, o pai da Psicanálise, o qual tb nasceu no leste europeu, porém em 1856. Pois então, ele nos ensinou que excessos quando não digeridos podem ser descarregados no corpo. Acho que o sr era habitado por muitos ressentimentos e rancores, Freud e Abraham estudaram muito sobre a melancolia, aprendi com eles que esse é o quadro psicopatológico mais permeado pela ambivalência… ah, desculpe-me, preciso lhe explicar ao que isto se refere: refere-se a amar e odiar intensamente uma mesma figura.
Imagino que era bem assim a sua relação com o seu pai: o sr o idealizava, vendo-o como um rei, claro que um déspota, mas um rei!!
“ tua opinião era certa, qualquer outra era disparatada, meshegue”, ao mesmo tempo o sr refere que seu pai ameaçava de lhe arrebentar como um peixe. Embora nunca tenha lhe batido fisicamente, o sr se sentia exposto, humilhado por ele, tal como o sr o via fazendo com os seus funcionários.
Não temos como saber se essa intensidade de afetos vividos era em função de alguma maior sensibilidade sua, ou porque de fato o seu pai era mais violento. Talvez isso não importe tanto, o mais importante para nós analistas é entendermos como isto ficou registrado para o sr.
A melancolia relaciona-se não necessariamente com uma perda real, mas com decepções vindas de um objeto idealizado, o investimento que estava depositado naquela figura é substituído por uma identificação, ficando o sujeito habitado por rancores e ressentimentos, que o mantém preso ao passado. Instala-se, então, dentro do sujeito um aspecto feroz e maltratante consigo mesmo.
O sr lembra que na pg 55 o sr sabiamente escreveu que entre o sr e seu pai não houve propriamente uma luta…fui logo liquidado, o que sobrou foi fuga, amargura, luto e luta interior. Assim, o sr Dr Kafka ficou prisioneiro de si mesmo, aquela parte que outrora foi atribuída ao seu pai, agora lhe habitava! O sr novamente tinha razão, separar-se do seu pai foi uma tarefa interminável, eu diria talvez impossível.
Assim é na melancolia, as auto-acusações nada mais são do que acusações áquela figura ambivalentemente odiada e amada direcionadas ao próprio sujeito. Parece que o sr ouviu muito bem as palavras do seu pai: nenhuma palavra de contestação (pg 35), imagino que o sr deva tê-las engolido…
O sr teve uma capacidade ímpar na escrita para o seu pai…uma verdadeira rota sublimatória! Não se preocupe com o fato de não tê-la entregue, sua escrita já foi uma entrega. E mais do que isso, o senhor entregou ao mundo uma obra de arte, uma verdadeira reflexão sobre as dores e os traumas que sua experiência de vida lhe acarretou. Casar e deixar herdeiros não foi possível, talvez isso pertencesse apenas ao seu pai.
Mas o sr nos deixou uma herança que só o sr poderia nos deixar: metamorfose, Veredicto, o Processo e a carta ao pai são os frutos eternos que o sr deixou para humanidade…Queria seguir conversando com o sr, mas o tempo passa, é implacável…
Obrigada,Dr Kafka
Prezado Dr. Kafka