O mercador de Veneza
O mercador de Veneza
Antonio Carlos J. Pires
Texto lido em reunião do Núcleo de Psiquiatras em Formação da Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, em setembro de 2006, durante o debate do filme O mercador de Veneza de Michael Radford.
O fascínio que William Shakespeare exerceu sobre Freud fez com que alguns psicanalistas contemporâneos considerassem a obra do bardo inglês como uma das principais fontes de inspiração do pai da psicanálise. Não é por acaso que, na cultura ocidental, o encantamento com as peças de Shakespeare persiste há mais de quatro séculos. Como poucos escritores, ele soube sondar os mais recônditos sítios da mente humana, e de uma forma tão delicada, tão sutil e de tão rara beleza que, ainda hoje, fica quase impossível não nos deixarmos tomar pelo impacto provocado por suas histórias. Assim Shakespeare tornou-se leitura de caráter universal, arrebatando-nos tanto pelo que diz explicitamente, quanto por aquilo que nos faz pensar a partir de seus textos. akespeare nos arrebata por aquilo que diz e pelo que deixa impla mente humana
Mas, antes de falar sobre a maneira como vi O mercador de Veneza, gostaria de deixar claro que minha leitura deste filme é apenas mais uma dentre as inúmeras compreensões possíveis desta obra. Assim, por exemplo, esta tragicomédia – escrita entre 1596 e 1598¨, e levada à tela por Michael Radford em 2004 – pode ser discutida a partir do seu tema central: o embate entre lei e justiça, entre o que consideramos legal e o que entendemos como justo, ou entre honestidade e hipocrisia. Além disso, esta peça também pode ser vista como um manifesto antimercantilista, ou como uma denúncia do preconceito social que tomou conta de Londres entre 1593 e 1594, uma época em que a sociedade londrina cristã enxergava os judeus da mesma forma intolerante e preconceituosa com que, no Mercador, os venezianos olhavam para o personagem Shylock: como um indivíduo sovina, insensível, cruel, desprovido de qualquer vestígio de amor ou compaixão. Ademais, esta novela pode ser analisada a partir das histórias secundárias nela contidas, assim como o fez Freud em O tema dos três escrínios, quando sugeriu que as três caixas de jóias, dentre as quais Bassanio deveria escolher apenas uma, representavam, simbolicamente, as três formas assumidas pela figura materna na vida do homem: a mulher que o trouxe ao mundo (sua própria mãe), a mulher que é sua companheira e que foi escolhida segundo o modelo desta mãe, e sua última parceira (a mãe terra) que o recebe após a morte. Outra vertente possível de discussão desta obra poderia ser a do componente homossexual presente na relação entre Antonio e Bassanio. Se admitirmos a ideia de que existem inumeráveis vértices a partir dos quais poderíamos encaminhar o debate desta película, surge de imediato uma indagação: qual deles seria o mais adequado, o mais rico, o mais verdadeiro? Não sabemos. O que podemos afirmar é que, sob distintos olhares, uma boa obra de arte se torna ainda mais fascinante – seja ela um livro, uma pintura, uma peça teatral, um filme ou uma música – pois quando sentimos e pensamos de maneira diferente ante uma manifestação artística como a que acabamos de assistir, e nos dispomos a discutí-la, como estamos fazendo agora, é certo que nos enriquecemos sobremaneira.
Minha proposta de leitura de O mercador de Veneza passa por uma reflexão de Milch, citado por Rogers e Kijak, que sustenta ser Shylock o protótipo da maldade. Centrarei meus comentários em torno deste personagem, no qual fica depositado, por assim dizer, o mal da humanidade, buscando entender por que teria ele se tornado uma figura tão abjeta. Tentarei também compreender por que e de que maneira este personagem nos toca, nos deixando ora irritados, ora tristes e até mesmo penalizados com o que lhe sucede.
Quando Melanie Klein, em 1935 e 1940Q, descreveu a situação que resulta da perda de um ente amado, ela sugeriu que esta condição pode, algumas vezes, ficar mal resolvida na mente da pessoa enlutada. Isto poderia ocorrer – segundo Klein – quando à perda real se associa uma fantasia inconsciente de se haver perdido, junto com o ser querido, os objetos internos bons que são os responsáveis pela sustentação do aparelho psíquico do indivíduo e que promovem a manutenção do seu equilíbrio interno, da sua saúde psíquica. Tal perda dos objetos internos bons está ligada à fantasia de que ressentimentos de parte do enlutado em relação à pessoa falecida possam ter causado a morte desta. Este quadro, matizado por intensa culpa e tristeza, é vivenciado, inconscientemente, como uma ameaça de ruptura da homeostase do aparelho psíquico, como uma espécie de prenúncio de aniquilamento do mundo interno. Seria como se os pilares de sustentação da mente enlutada estivessem sendo ameaçados de total destruição. Para fugir à culpa que corrói e à terrível ameaça de esfacelamento da mente, sugere esta autora, o indivíduo pode fazer – de forma inconsciente – uma regressão para a posição esquizoparanóide, onde o medo da perseguição é também assustador, mas menos angustiante e mais tolerável do que a fantasia de destruição total desencadeada pela posição depressiva. Em função disso é que a pessoa enlutada ocupa sua mente no embate contra um inimigo imaginário, se afastando assim, pelo menos temporariamente, da tristeza pela perda do ente querido. Claro está que, se tal condição persistir, não haverá elaboração da perda, configurando o que habitualmente denominamos luto patológico.
E de que maneira esta teoria se aplica ao personagem que estamos buscando compreender? Como pudemos constatar, Shylock, por alguma razão que não fica clara, demonstra ter uma vida de relação bastante pobre: tem uma única filha e, inclusive com ela, mantém um contato afetivo apenas superficial. Talvez justamente por isso tente compensar sua pobreza interna com um excessivo apego ao dinheiro. Assim, o equilíbrio interno de Shylock parece estar estabelecido nas seguintes bases: o que ele não tem em termos afetivos procura compensar com bens materiais. Esta harmonia, ainda que instável, funciona razoavelmente bem, até ser rompida no momento em que sua filha vai embora de casa com seu amado. Na mente de Shylock, em um plano inconsciente, talvez possa ter se passado algo mais ou menos assim: senti a saída de casa de minha filha como se tivessem arrancado um pedaço de minha própria carne! E logo de mim que sou tão pobre de afetos! Sinto como se estivessem se rompendo os pilares de minha sustentação interna que já são tão frágeis… Para não ter que enfrentar a terrível dor provocada por esta perda, sentida como uma ameaça iminente de ruptura do meu equilíbrio psíquico, quem sabe eu possa tentar criar uma situação que me dê a ilusão de que este sofrimento não é meu, mas, sim, de outro? Mas quem seria este outro? Antonio, talvez? A cuspida que ele me deu no rosto, no passado, poderia me servir, no presente, de pretexto para justificar meu ódio em relação a ele, permitindo-me inclusive tratá-lo como se trata um verdadeiro inimigo. Assim, enquanto me ocupo com esta luta, esqueço a tristeza pela perda de minha filha. Não, melhor ainda, quem sabe arrumo um jeito de fazer com que esta dor de ter um pedaço da própria carne arrancado não seja mais minha e, sim, dele? O resto da história nos é familiar: Shylock, de uma forma arrogante e impiedosa, desvia sua atenção para Antonio e passa a dele cobrar uma libra de carne. Sua necessidade inconsciente de levar adiante este plano é tamanha que se nega inclusive a receber, a título de ressarcimento, o dobro da quantia em dinheiro que havia emprestado. Em função disso, ele segue a batalha com Antonio, até mesmo com requintes de crueldade, e só volta a tomar contato com a causa real de seu desespero quando o julgamento chega ao fim, e ele admite publicamente ter uma vida interior tão pobre, a ponto de se imaginar uma pessoa desprovida de qualquer valor, caso lhe tirem sua fortuna material. Por trás do estereótipo do homem avarento, insensível, cruel, o que passamos a ver, então, é a triste figura de um pai arrasado, prostrado de joelhos, enlutado pela perda da filha, seu único elo amoroso mais verdadeiro com os demais seres humanos.
Mas por que esta história nos toca? Evidentemente, ao longo da vida, todos nós sofremos perdas, reais e/ou fantasiadas, e isto nos aproxima do drama vivido pelo protagonista central do filme, fazendo com que possamos nos identificar com ele, sentindo a tristeza decorrente de sua perda. Só que, a exemplo de Shylock, também nós tememos entrar em contato com nossos núcleos depressivos e, como ele, às vezes nos refugiamos em lutas contra inimigos imaginários, buscando evitar o surgimento de ansiedades depressivas. Neste sentido, este personagem, da maneira como foi construído por Shakespeare, torna-se um vilão muito fácil de ser odiado, na medida em que é apresentado como o estereótipo da maldade humana: um ser egoísta, insensível, desumano e cruel, a ponto de exigir o pagamento de uma dívida com uma libra de carne do seu devedor. Talvez por isso não seja tão difícil sentir raiva de Shylock durante boa parte do filme, pelo menos até o momento em que ele volta a se revelar prostrado pela perda de sua filha única. E é justamente neste momento em que voltamos a nos deparar com a triste figura do pai arrasado, com medo de sucumbir ante o terrível estado de miséria interna a que ficou reduzido após a fuga da filha. É nesta hora que a ira dá lugar à compaixão, e passamos a compreender um pouco melhor as razões que teriam levado o judeu veneziano a se conduzir da forma tão abjeta como o fez. Ademais, o que esta história talvez também nos ensine é que, se olharmos Shylock apenas sob a lente da virtude moral, enxergaremos somente o aspecto odioso do personagem shakespeariano, ficando assim sem qualquer possibilidade de uma compreensão mais profunda da trama. E, sem entendimento, o que resta é apenas o vazio.
Freud sugere que Shakespeare teria tirado esta história das Gestas Romanas, uma compilação medieval de histórias de autoria desconhecida do século XIV, que teria tido duas edições inglesas no século XVI, na qual uma moça tem que fazer uma escolha semelhante à de Bassanio para casar com o filho do Imperador.
A contribution to the psychogenesis of manic-depressive states e Mourning and its relation to manic-depressive state’.
O mercador de Veneza