Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)

ANO 22 • • Nº 42

ÓRGÃO OFICIAL DA SOCIEDADE PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

Porto Alegre | RS

Autora

Luciane Falcão

Psicanalista, Membro Efetivo e Analista Didata da SPPA. Analista de crianças e adolescentes

Sexualidade hoje: mais questões, menos respostas

  • No século passado, as descobertas de Freud sobre a sexualidade foram recebidas como um escândalo. Será que estamos reagindo de forma similar às modificações atuais da sexualidade? Ilustração: Freepik

Em 1905, Freud escreveu Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, revelando que o desenvolvimento da sexualidade ocorre desde o nascimento do bebê. Quando ele mama no seio da mãe, sente uma excitação prazerosa, assim como experimenta sensações agradáveis ao esvaziar a bexiga e o intestino ou quando descobre seus genitais e sente prazer em tocá-los. Essas descobertas (e tantas outras) foram anunciadas na Viena do início do século passado, tendo sido recebidas pela grande maioria das pessoas como um escândalo!

Não estaríamos reagindo de forma similar quando percebemos que muitos vivem sua sexualidade como lhes convém, fazendo, muitas vezes, mutações no próprio corpo? Aceitamos facilmente que homens e mulheres submetam-se a cirurgias estéticas, com frequência violentas, de uma forma igual ou diferente de quando, por exemplo, uma pessoa transexual faz uso de hormônios ou cirurgias para buscar um corpo mais próximo do gênero com o qual se identifica?

Aceitamos ou não que as pessoas possam estar vivendo o polimorfismo da sexualidade infantil de uma forma mais integrada às suas identidades de gênero, uma vez que seria impossível pôr ordem na desordem natural do sexual infantil? Seguiremos vendo o primado do genital como característica da forma completa da sexualidade (isso existe?), considerando que esta seria apenas a relação de dois órgãos, o pênis e a vagina? Sabemos que essa forma de ver a sexualidade está longe de qualificar a vida sexual de muitos seres humanos. É importante pensarmos se, em função desse primado do genital, não acabamos inserindo um ponto de vista normativo ao invés de considerar a sexualidade polimorfa que utiliza todos os meios corporais.

Precisamos ouvir nossos colegas que trabalham com pacientes que expressam sofrimentos psíquicos arrasadores, muitos deles relacionados às suas identidades de gênero. Patrícia Gherovici é uma delas. Trabalha em análise com pacientes transgêneros e nos mostra que não é o aparelho genital de um trans que deveria estar em debate e sim a sua estrutura de Eu, a sua construção do Eu, os seus processos de identificação. Ela afirma que a diferença sexual não é nem sexo nem gênero, porque o gênero necessita ser encarado e o sexo simbolizado. Questiona se a diferença sexual é uma categoria comparável a outras formas de diferença no jogo das construções da identidade – social – racial – de classe. Ou a diferença sexual é outro tipo de diferença?

Ampliando essas questões, trazendo-as diretamente para o nosso trabalho como psicanalistas: estaríamos em condições de ver e decodificar as pessoas no gênero com o qual se identificam assim que adentram em nossos consultórios? Como as olhamos? Como vivemos tal impacto estético? Estaríamos aptos a ver beleza nessas pessoas ou enxergamos o monstro que vos fala, expressão do filósofo e escritor Paul Preciado?

Será que estamos presos às questões normativas de uma psicanálise estagnada? Estaríamos aptos a rever antigos conhecimentos psicanalíticos teóricos responsáveis por colocar no campo patológico as identidades e práticas sexuais que não se subordinavam aos estereótipos pré-estabelecidos? Estaríamos aptos a compreender que a preocupação maior das pessoas que apresentam gênero não normativo e se identificam como trans não tem a ver com o gênero ou com a sexualidade e sim é uma questão de vida ou morte, como tem sido os argumentos de Gherovici?

Será que esses elementos permanecem presentes na psicanálise contemporânea em ressonância com os discursos retrógrados que reforçam a violência histórica sofrida pelas pessoas que desejam viver a sua sexualidade da forma que lhes convém? Será que, quando pensamos na constituição do sujeito psíquico e da sua subjetividade, estamos incluindo a ideia de que esse sujeito também se constitui em um campo social? Será que percebemos que a patologização de expressões não normativas de gênero e sexualidade é uma forma de discriminação e de violência social, como afirma Gherovici?

Preciado afirma: “O desejo não é uma verdade dada, mas um campo social fabricado que pode ser modificado na condição de investir os instrumentos da metáfora e da imaginação, da poesia e da experimentação somática” (P. Preciado, 2000)

Vamos repensar as questões referentes à forma como o ser humano vive a sua sexualidade hoje ou vamos nos escandalizar como a sociedade vienense do século passado?