Psicanálise e Cultura

Memória, desejo e percepção na criação artística: perspectivas psicanalíticas contemporâneas

MEMÓRIA, DESEJO E PERCEPÇÃO NA CRIAÇÃO ARTÍSTICA:

PERSPECTIVAS PSICANALÍTICAS CONTEMPORÂNEAS* (2003)

 

Isaac Pechansky

É mais fácil nos entregarmos aos deleites que os produtos da criação artística nos proporcionam, do que buscar explicações para suas fontes geradoras. Se a resposta do espectador pode se dar num instante, o artista viveu todo um processo de gestação que pode levar horas, dias ou mesmo anos. E aí reside o mistério.

 

 

 

O impacto estético causado pela obra de arte transporta o espectador por uma caminho de fantasias e desejos que muito se aproxima das fontes que geraram a própria criação da obra. O espectador é reconduzido, através de suas emoções, às profundidades do seu mundo interior, na verdade o mesmo mundo interior que motivou a exteriorização da obra de arte. Pode-se dizer que o artista instiga sensibilidades e desperta sentimentos, estabelecendo com o espectador um misterioso conluio estético, trama inconsciente que une a ambos, mantendo-os cativos um do outro: o primeiro com sua necessidade de libertação em busca de alguém que o contemple à semelhança de um impulso em busca de um objeto; o segundo, movido por esse apelo, deixando-se levar pelos sonhos e fantasias, quem sabe com a mesma necessidade de libertação. Onde um termina o processo da criação, o outro inicia o seu processo de fruição1.

Podemos supor que é das camadas mais profundas da mente humana que o artista retira grande parte dos ingredientes e, com sua capacidade de simbolização, se realiza através da elaboração e construção de uma obra de arte, num verdadeiro processo evocativo de recriação.

Haverá sempre algo de autobiográfico, em um momento ou outro da criação artística, como que a resgatar, pela memória, partes importantes do passado do artista. O impacto estético provocado em nós espectadores provém dessas mesmas fontes profundas e históricas, que nos possibilitam recriar emoções significativas mediante os mesmos processos de simbolização e elaboração.

Freud contribuiu muito para a compreensão das origens e função da obra de arte, estabelecendo inclusive conexões entre sonhos, devaneios e atividade artística. Em alguns artigos que escreveu sobre obras de arte específicas de alguns artistas, sobre temas retratados na literatura ou sobre problemas gerais da criatividade, segundo Hanna Segal, ele sempre teve em mira a psicobiologia do artista, utilizando as obras de arte como reveladoras de conflitos internos e da história psicológica do autor. A descoberta da fantasia inconsciente e do simbolismo propiciou uma perspectiva nova e deu uma nova profundidade à compreensão da expressão simbólica da fantasia: a arte.

Mas é preciso considerar que sonhos, devaneios e necessidades infantis não satisfeitas, e muitas outras questões do inconsciente, são ocorrências universais na espécie humana. Por que então uns derivam para a criação artística e outros não; por que uns chegam mesmo à genialidade, e, com o produto de suas criações, são capazes de despertar as mais variadas formas de emoção no espectador? São perguntas inquietantes e que não encontram resposta fácil, gerando inclusive um clima de mistério e desafio a todos que se embrenham nos caminhos das explicações (Kris, 1952, p. 25).

Grande apreciador das artes e incansável leitor, Freud, no artigo “Escritores criativos e devaneios” (1907) inicia dizendo: “Nós leigos, sempre sentimos uma intensa curiosidade em saber de que fontes esse estranho ser, o escritor criativo, extrai seu material, e como consegue nos impressionar e despertar emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes”. E mais adiante: “Todo prazer estético que nos proporciona um escritor criativo tem esse caráter de prazer preliminar, que nos é oferecido para possibilitar a liberação de um prazer ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais profundas”. E conclui: “Em minha opinião, o prazer estético que o escritor nos proporciona é da mesma natureza do prazer preliminar, e a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária provém de uma liberação de tensões em nossas mentes”.

São considerações que, embora se refiram ao escritor criativo, podemos entender que se estendem naturalmente a qualquer forma de expressão artística.

Freud, sempre mais interessado no conteúdo do que na forma, buscou descobrir as motivações inconscientes de seus criadores através de suas obras e personagens: fez isso com o quadro Sant’Ana, a Virgem e o Menino, de Leonardo da Vinci, com Dostoievsky e o Parricídio, e com Moisés de Michelangelo. É famoso o estudo que fez sobre Moisés. Especulou muito sobre a postura dessa imponente figura bíblica nos seus mínimos detalhes, e não menos sobre as intenções de Michelangelo em esculpi-lo daquela maneira: um verdadeiro trabalho de arte analítica sobre uma grandiosa obra de arte. Conta a lenda que quando a escultura foi concluída, Michelangelo num golpe de martelo teria dito: “Fala”! Bem que Freud, no seu exaustivo trabalho de pesquisa, teria desejado que a escultura falasse.

Moisés quase falou, e Freud não pode dialogar com seu criador. Mais sorte teve Pigmalião, o lendário escultor de Chipre. Apaixonado pela estátua de Galatéia, sua própria obra, conseguiu que Afrodite, a deusa grega da beleza e do amor, a dotasse de vida e com ela se casou. Este é o privilégio do artista que cria sua obra de arte, pois a possui dentro de si e com ela usufrui todos os prazeres que lhe permitem suas fantasias. É muito conhecido o cartoon em que aparece um pintor famélico retirando da tela um prato de comida que havia pintado. Quem não desejou comer as deliciosas frutas imortalizadas pelos mestres flamengos em suas naturezas mortas? O impacto estético e associativo nos deixa com água na boca. Freud não contou com a ajuda dos deuses, por isso não pôde ficar com toda a verdade, mas chegou muito perto.

Assim como Freud, muitos outros, inclusive em nosso meio, incursionaram pelo que se chama Psicanálise Aplicada, ou seja, a aplicação dos conhecimentos psicanalíticos no estudo de grandes personalidades da história, expressivas obras de arte visual e literária, etc.

Existe uma atividade regular na nossa Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre que propõe uma discussão pública sobre criatividade, nas mais variadas formas de expressão, como obras literárias, filmes, peças de teatro, artistas e personalidades universais. Participam dessas atividades psicanalistas, críticos de arte, filósofos, antropólogos, sociólogos, poetas, escritores, artistas e cineastas. Nessa oportunidade a obra em discussão fica exposta a múltiplas vertentes teóricas do conhecimento humano.

Mas nesses encontros se instala, irremediavelmente, uma discussão que não resiste à tentação de vasculhar o mundo interior do autor da obra, mesmo que nem sempre a reunião seja proposta para essa finalidade.

É verdade que não podemos dialogar diretamente com Machado de Assis, Dostoievsky ou Shakespeare, Leonardo da Vinci, Michelangelo ou Picasso, Mozart, Beethoven ou Debussy, ou mesmo Hitchcock, mas podemos nos valer dos seus dados biográficos, e mais do que isso, da eloquência de seus personagens, das imagens expostas na tela, do desempenho dramático dos atores, dos mínimos detalhes esculpidos na pedra, da vibração sonora de suas composições, e assim, quem sabe, traçar o perfil psicológico do autor através da sua obra. Na verdade, agora como espectadores, iniciamos uma busca dos motivos e intenções do autor, por que ele escolhe determinados rumos, e como ele atinge seus objetivos na criação artística.

Ao mesmo tempo que somos espectadores, nós psicanalistas queremos explicar, quem sabe no anseio de compreender fantasias e identificações, certos de que deve existir um ponto de encontro entre o espectador e o autor em algum local de nossas mentes. Com isto, corremos o risco de, na tentativa de explicar a obra e o ato criador, estar interferindo na emoção despertada pelo impacto estético que a obra suscita em nós. Se ela é capaz de mobilizar emoções, nenhuma explicação para os motivos desse impacto irá impedir o seu surgimento. É exatamente a capacidade persistente de provocar no espectador tal reação emocional que confere à obra de arte o objetivo proposto pelo autor. Se por um lado o autor resolve problemas através da sua obra, o espectador, através de identificações e devaneios, mergulha na sua fruição.

No ensaio de 1907, Freud procura estabelecer a importante diferença que existe entre o artista criativo e aquele que devaneia. Este, em seu devaneio, ignora a realidade objetiva em que vive, num processo de verdadeira negação, e dá rédeas soltas a seu princípio do prazer, realizando suas fantasias de desejo.

Por sua parte, o artista tem isso em comum com o devaneador: ele cria um mundo de fantasias no qual pode encontrar a satisfação de seus desejos inconscientes. No entanto, distingue-se daquele que devaneia, pois encontra um caminho de volta à realidade em sua criação artística. O devaneador, “ao acordar”, retorna à realidade com desprazer.

Surge aqui uma questão controversa: enquanto Freud considera que o artista encontra um caminho de volta à realidade, operando essencialmente sob o princípio do prazer, com a satisfação onipotente do desejo, Hanna Segal afirma que o artista, sob algum aspecto essencial, nunca se afasta da realidade, e que a essência da experiência estética guarda alguma relação com sentimentos tais como a inevitabilidade e a verdade, o que é o oposto da satisfação onipotente de desejo.

Entendo que o artista, impulsionando pelo desejo de criar, de dar forma exterior à sua imaginação interior, passa a viver aqueles momentos inquietantes que só se tranquilizam, mas não se esgotam, na verdade da sua criação. Assim como o poeta na sua forma literária, o compositor necessita se expressar pela união dos sons que lhe brotam de dentro; o pintor se inquieta diante de uma tela branca; o escultor se sente estimulado no embate contra a resistência da pedra fria, dura e disforme.

O criar artístico avança para além dos limites da criatividade comum das pessoas: ocupa um espaço que é inacessível ao espectador, que dele não participa a não ser através de suas próprias emoções, geradas pela obra de arte.

É instigante a constatação do que é capaz um artista plástico pelo poder de transmitir a um espectador, com um único impacto, qualquer sentimento, como dor, prazer, alegria e tristeza, sentimentos que se renovam a todo instante, como que a invocar reminiscências. Se o escritor tem o poder de nos transportar para dentro de sua obra e viver, ou reviver, num enlevo de identificações, papéis nem sempre consonantes com a realidade objetiva, um ouvinte mais sensível, embalado por alguns acordes musicais, é capaz de se deixar levar, ao amparo de seus devaneios, para um mundo de realizações fantasiosas. “Quem sabe esse resultado obedeça em grande parte ao fato de que o poeta – o artista – nos permite gozar nossas próprias fantasias, sem pudor e sem escrúpulos”, como dizia Freud, e afirmar numa passagem do seu estudo sobre Moisés: “A meu ver, o que nos prende tão poderosamente só pode ser a intenção do artista, até onde ele consegue expressá-la em sua obra e fazer-nos compreendê-la. Percebo que isso não pode ser simplesmente uma questão de compreensão intelectual; sua intenção é despertar em nós a mesma atitude emocional, a mesma constelação mental que nele produz o ímpeto de criar” Aristóteles deve ter tido uma profunda intuição ao considerar que arte é libertação e, como tal, tem uma função catártica. Não fora assim, como entender o prazer despertado pela arte dramática. “Esta é uma questão desconcertante” no dizer de Kris (op. cit., p. 54).

Hanna Segal, importante psicanalista da Escola Inglesa, faz algumas considerações sobre as reações emocionais geradas pelas obras de arte.

Citando Fry (1924) e Bell (1914), ela destaca o fato de que aquilo que Freud descreve como emoção despertada pela criação artística, é o que Fry chamou de “emoção associativa”, e não emoção estética propriamente dita. Cita como exemplo a emoção despertada ao se ouvir determinada melodia porque relembra um antigo encontro amoroso. Realmente, é fácil rememorar a celebração de um casamento ao se ouvir a Marcha Nupcial de Mendelssohn.

Por outro lado, Bell, falando especificamente sobre artes visuais, destaca que há um tipo particular de emoção provocado por essas formas de expressão artística. Em sua opinião, nenhuma pessoa capaz de senti-las contestaria o fato de que essa emoção é gerada por todos os tipos de artes visuais, tais como pinturas, esculturas, monumentos, etc., e que ele chama de emoção estética. E se pudéssemos, continua Bell, “descobrir alguma qualidade comum e peculiar a todos os objetos que a provocam, teríamos resolvido o que considero ser o problema central da estética. Teríamos descoberto a qualidade essencial de uma obra de arte, qualidade essa que a distingue de todas as outras classes de objeto”. Essa qualidade que postulou, Bell chamou-a de “forma significante”, que seria a qualidade comum a todas as obras de artes visuais.

Hanna Segal toma como exemplo a “Guernica” de Pablo Picasso para afirmar que o conteúdo e a forma, a emoção associativa e a emoção puramente estética não podem realmente ser separados sem que se empobreça a experiência estética. Ela parte do princípio de que Picasso, através dessa obra, faz um apelo calculado a todas os sentimentos mobilizados pelo bombardeio da cidade espanhola. Difícil seria separar a emoção estética das emoções associativas despertadas pelo famoso painel, evocadoras de tão terrível acontecimento. Vê-se claramente que o artista tem uma intenção consciente de acionar no espectador reações de terror, mas podemos pensar que, inconscientemente, deixa a descoberto a possibilidade de revelar sentimentos conflituosos de sua história pessoal.

Tem razão a autora ao afirmar que o poder do impacto deve-se à capacidade de Picasso de mobilizar, por via das emoções associativas, outras emoções inconscientes, mais profundas. Por outro lado, acredita a autora que a forma, seja ela musical, visual ou verbal, pode nos comover tão profundamente porque incorpora de forma simbólica um significado inconsciente. Em outras palavras, a arte incorpora, simboliza e evoca no receptor certa espécie de emoção arcaica do tipo pré-verbal, estabelecendo com o artista o que anteriormente considerei tratar-se de um conluio estético. E assim retornamos a Freud, com a ideia de que o artista visa evocar no receptor de sua arte a mesma constelação de sentimentos inconscientes que o motivou, e sugere que as emoções devem ter algo em comum para despertar a chamada “experiência estética”.

Especulando sobre a relação que se estabelece entre o artista criador e o leitor, ouvinte ou espectador, pode-se supor que ambos partem da mesma fonte profunda de suas mentes, tantas vezes descrita como geradora de variadas formas de expressão emocional, por mais bizarras que sejam, Mas seguem rumos distintos até atingirem os espaços da realidade objetiva: com a exteriorização da obra do artista, nada mais resta ao espectador do que a resposta provocada pelo impacto estético, ou mesmo a emoção associativa. Há algo de mistério, ainda não desvendado, nesse destino imprevisível. “Ao cidadão comum, a mensagem do autor chega como uma oferta intimidade, que lhe proporciona a elaboração de suas próprias fantasias subjacentes, que se traduz nas surpresas, nos achados da leitura, na perplexidade diante de um quadro surrealista, acompanhados duma sensação de bem-estar ou mesmo de desconforto”, escreveu um dia Cyro Martins.

Cyro Martins, psicanalista e escritor a um tempo só, sensível a essas questões sobre a criatividade, tratou de compreender essa profunda e dinâmica relação que se estabelece entre o artista e o público apreciador de arte ao afirmar que: “Na plenitude da sua função expressiva e catártica, a obra criada se impõe como objeto bom, revalorizador do ego, para o agente da criação e para o espectador. Para o agente, porque vivencia a obra como um complemento do próprio ser, que o ajuda, através do artifício da projeção, a configurar e a corrigir a representação que faz de sua autoimagem e a ampliar a compreensão do sentido de sua existência. Para o espectador, mediante a função especular e as consequentes oportunidades de identificação projetiva inerentes a toda produção conceitual ou artística, mais precisamente, porque lhe proporciona uma experiência no intemporal. E assim, por momentos, o espectador é imortal como supõe que seja o criador”.

Nem sempre o artista está consciente dessa capacidade de causar tão variadas reações afetivas, embora possuidor de um poder difícil de explicar. Se ele não falar sobre a obra que produziu, dando detalhes sobre a composição, a forma, a textura, a cor; o acorde que se segue a uma nota musical; em quem pensava quando num poema descreveu um idílio amoroso, nada pode ser explicado quanto às suas intenções: quando muito alguma especulação sobre o autor e muita projeção, fantasias e recordações, por parte do espectador, ouvinte ou leitor.

Nada de mal neste diálogo mudo diante de uma obra de arte. O problema surge quando se quer “interpretar”, numa tentativa selvagem de descobrir o que se passa na cabeça do artista, e os mil “por quês” disto ou daquilo, sem um mínimo de conhecimento de sua vida interior, sua história, seu passado, suas vicissitudes, enfim.

Quando falo em especulação, não estou invalidando com isso todo o valor científico que se pode emprestar a um trabalho desse gênero nas mãos de pessoas qualificadas. Muito já foi escrito sobre obras de arte e artistas, numa tentativa, às vezes ansiosa, de descobrir as fontes do gênio. Grandes personalidades históricas já foram objeto de estudos muito sérios, sobre a vertente de suas emoções mais profundas, sem que com eles nenhum estudioso tivesse mantido qualquer contato direto, como mencionei anteriormente. Em nosso meio, Raul Hartke fez um amplo estudo psicológico sobre Pablo Picasso, através de muitos dados biográficos e tomando como principal referência a famosa pintura “Guernica” e a gravura “Sonho e Mentira de Franco”.

Quem se atreveria a decifrar a mente interior de Cervantes, na tentativa de desvendar os motivos inconscientes que geraram criaturas tão fantásticas como Dom Quixote e Sancho Pança? Não há gênero no mundo das artes que não tenha reproduzido tão legendárias figuras, dada a riqueza de detalhes com que o autor os descreveu, não só nas aparências físicas como em seus temperamentos, emoções e condutas. A gravura de Daumier, o monumento na Praça de Espanha em Madrid, o Poema Sinfônico de Richard Strauss, os desenhos de Gustave Doré, o ballet que Nureyev imortalizou, e tantas versões cinematográficas, como que consagraram a imortalidade desses personagens, hoje mais conhecidos que o próprio Cervantes que os criou.

Assim como Dom Quixote e Sancho Pança, grandes obras de arte e personagens carismáticas também se tornaram mais conhecidos que seus criadores, só explicáveis pelo Fascínio que despertam e pela magia que envolve todo o processo da simbolização. Sherlock Holmes e James Bond são mais conhecidos que Conan Doyle e Ian Fleming porque resolvem, por caminhos fantásticos e cativantes, problemas que dão alívio às nossas próprias tensões e mistérios insondáveis.

Uma das obras primas de Leonardo da Vinci, a “Santa Ceia”, verdadeiro ícone universal, pode ser encontrada em qualquer lugar, reproduzida das mais diferentes formas, e adquirida não pelo seu valor estético, mas atendendo a um apelo a valores espirituais. A humanidade, ao longo da história, apropriou-se do afresco já desgastado de Milão, e o transformou em imagem que consagra a união do homem com sua fé, quem sabe realizando um sonho de Leonardo, no anseio de capturar o espectador e se eternizar na sua obra.

Assim, ao fazer germinar as sementes que vem armazenando ao longo de toda a sua história passada, o artista passa a usufruir no presente a colheita dos frutos que a obra lhe oferece, valendo-se do espectador para que usufrua e compartilhe com ele esses mesmos sabores, doces ou amargos, e assim se projetar no futuro. Não é este o desejo de todo artista?

Donald Meltzer, importante psicanalista contemporâneo, em seu livro “A apreensão do belo”, afirma que “a mente é a função geradora de metáforas que usa o grande computador – o cérebro – para escrever sua poesia e pintar seus quadros de um mundo cintilante de significado. E significado é, em primeira instância, a manifestação fundamental das paixões da relação íntima com a beleza do mudo”. Creio que o autor está fazendo uma alusão de como e onde são geradas todas as formas de expressão artísticas. E vai mais longe quando no seu livro “Claustro”, nas considerações sobre a Dimensão Geográfica do Aparelho Mental, faz uma análise profunda do significado do interior materno, que é a grande fonte geradora da criação artística. Valendo-se dos artistas e dos poetas, afirma que existe “um contínuo intercâmbio entre o mundo interno e o mundo externo, um comércio cujas qualidades formais são introjetadas e cujo significado é externalizado”.

É assim que a criação da obra emerge das profundezas do artista. Como a semente germinadora encontra na matriz solo fértil para produzir a maior obra de arte de todos os tempos, a vida, ela é recriada pela mente do artista através das mais distintas formas de arte. Como os bebês perpetuam a espécie humana, a obra de arte imortaliza seu criador.

Quero fazer ainda breves considerações sobre o problema da angústia em relação à criação artística. Uma tentativa de estabelecer a angústia, o sofrimento, a privação enfim, como condições essenciais para ser artista, merece algum reparo. Sei que muitos nomes poderão ser lembrados, como Van Gogh, Modligliani e muitos outros infelizes geniais. Não temos outra saída: o gênio não se explica, mas suas angústias sim. Além do mais, é do conhecimento mais primário que sem angústia não há vida criativa; sem angústia o homem não cresce, não gera, não reproduz.

Falo daquela angústia que se faz necessária para que o indivíduo transponha as barreiras do seu próprio desenvolvimento, e não daquela angústia paralisante e empobrecedora, gerada nos caminhos dos conflitos humanos. Não falo da angustia que impõe limites muito aquém das nossas capacidades, passível de estancar a produção de um Rachmaninov, recuperada após um tratamento psicológico: o resultado dessa recuperação foi o Concerto para piano e orquestra nº 2, sua obra mais importante. Van Gogh e Modigliani produziram obras-primas porque viviam atormentados por suas angústias? Ou deixaram de produzir outras tantas por causa dessas mesmas angústias? Não foi o gênio ou o talento que levou Van Gogh ao suicídio, evidentemente. Tampouco era a capacidade criadora de Modigliani que o impulsionava a jogar aos ventos muitos dos desenhos criados furiosamente nos bares. Não creio tenha sido a homossexualidade tormentosa de Tchaikovsky que produziu vibrantes composições musicais.

Certa ocasião, muitos anos atrás, numa conversa social, um artista plástico me disse que jamais faria tratamento psicanalítico. Achei que seria ótimo ele não precisar de tratamento e viver feliz, mas não era esse o problema. “O tratamento – disse ele – iria acabar com a minha angústia, e sem angústia eu não seria capaz de produzir”, concluiu. A conversa era informal e ficamos por aí, com todo o respeito pela sua decisão. Ele era um artista promissor, pelo menos assim julgavam os críticos da época. Mudou-se para longe, junto com suas angústias e sua arte, e não passou de um artista promissor. Tinha talento, sem dúvida alguma, e o que poderia ter produzido se tivesse dado outra solução às suas angústias?

Dizer-se, portanto, que um tratamento psicológico possa interferir na criação artística, de modo a inibir a potencialidade do artista é acima de tudo, uma afirmação preconceituosa, falácia que não encontra respaldo na experiência de qualquer terapeuta que se dedique à investigação dos processos mentais inconscientes.

O encontro mágico que se dá entre percepções objetivas e subjetivas é sempre capaz de estimular a capacidade criadora: assim, na mente do artista, o simples entardecer se externaliza numa melodia, num poema, numa pintura, numa coreografia. Num outro momento, a percepção externa se torna desnecessária. Com as ferramentas que são próprias ao seu ofício e fazendo uso de seu natural impulso criador, ele extrai do manancial das memórias aquilo que necessita para recriar e recriar – na busca ansiosa da satisfação dos seus desejos – tentando solucionar problemas que ele mesmo se impôs, com todo o seu poder de sublimação e simbolização.

– Este é dom que o distingue dos demais mortais.

O gênio, é forçoso admitir, ainda se constitui num desafio enigmático que nem o próprio gênio consegue decifrar.

 

REFERÊNCIAS

FREUD, S. (1907). Escritores criativos e devaneios. ESB., v. 9. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

____. (1914). Moisés de Miguel Ángel. Obras completas. v. 5. Madrid: Nueva, 1972.

KRIS, E. (1952). Psicoanálisis y arte. Buenos Aires: Paidós.

MARTINS, C. (1971). Criatividade. In: II Congresso Brasileiro de Psicanálise. Rio de Janeiro. Relatório.

MELTZER, D.; HARRIS, W. M. (1988). A apreensão do belo: o papel do conflito estético no desenvolvimento, na violência e na arte. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

___. (1992). Claustrum. Buenos Aires: Spatia, 1994.

SEGAL, H. (1991). Sonho, fantasia e arte. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

* Painel II apresentado no Simpósio da SPPA, na 4ª Bienal do Mercosul, Porto Alegre, 10  e 11 de outubro de 2003.

1 A criação artística na sua essência.


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