Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)

ANO 23 • • Nº 43

ÓRGÃO OFICIAL DA SOCIEDADE PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

Porto Alegre | RS

Autora

Suzana Fortes

Psicanalista SPPA, membro do comitê de violência da IPA

Em que mundo vivemos? A psicanálise em situações de violência e trauma

  • A psicanálise possui ferramentas teórico-clínicas úteis na abordagem de situações de violência e catástrofe, assim como na prevenção em saúde mental.

A enchente no Rio Grande do Sul tornou visível uma realidade que estava sendo negada e encoberta. Uma catástrofe anunciada atingiu o estado, em especial uma população que já vivia em situação de precariedade e vulnerabilidade, a qual atualmente se encontra em abrigos e sem perspectiva de volta para suas moradias. Escolas permanecem alagadas. Crianças, adolescentes e professores que também perderam tudo encontram-se em situação de desamparo e incerteza em relação ao retorno para a escola e à possibilidade de retomar o ano letivo. Qual o papel da psicanálise diante de tanta violência e trauma? Em setembro de 2018, Virgínia Ungar, em entrevista publicada na RBP, colocou como um dos objetivos principais de sua gestão desenvolver o trabalho da IPA na comunidade, através de comitês e da inserção dos analistas exercendo sua função social por meio do pensar e de ações psicanalíticas.

O psicanalista uruguaio Viñar já enfatizava, em 2006, a gravidade da realidade social na América Latina. Era categórico ao dizer que os seres que nascem frágeis e indefesos devem ser protegidos e socializados pelo mundo adulto. Abordando a questão do sujeito hoje e a unidade ou dispersão do conceito de humanidade ou natureza humana, incluía como ponto prioritário o profundo abismo e hostilidade entre incluído e excluído. O reconhecimento e o espelho do próximo são decisivos para conquistar a condição de ser humano, de personalização do semelhante.

Butler (2018), ao se referir à exigência ética na obra do filósofo Levinas, coloca que o autor é muito claro quando afirma que a visão do outro não deve ser entendida de forma literal. Precisamos ver e escutar o outro por estarmos sensíveis ao apelo ético que ele nos dirige, o que implica na existência de uma responsabilidade afetiva e ética com o outro. A vida em geral, nas condições de existência, pode ser considerada precária, pois está sujeita a acabar a qualquer momento por condições incontroláveis. Entretanto, é evidente que certas populações estão sujeitas à formas específicas de “precariedade” devido às políticas públicas ou são expostas à violência, catástrofes ou guerras.

Estas populações são muito mais vulneráveis e suscetíveis à destruição por situações socialmente determinadas de exposição à morte. É o caso de crianças e adolescentes vivendo em locais onde impera a violência e a guerra do tráfico, em que a precariedade se caracteriza por uma exposição à morte desigual e injusta. Assim, quando Levinas se refere à “visão do outro”, enfatiza que o rosto (visage) deste deve aparecer e nos afetar através de uma experiência sensível ou “emocional”. Podemos ver, escutar e sentir os outros por estarmos sensíveis ao apelo ético que ele nos faz.

A psicanálise possui ferramentas teórico-clínicas úteis na abordagem de situações de violência e catástrofe, assim como na prevenção em saúde mental.

Ansiedades primitivas e sentimentos de desamparo são desencadeados por experiências emocionais disruptivas e sem possibilidade de simbolização. Em um primeiro momento, acolher e escutar o testemunho individual é também ouvir o testemunho coletivo, pois estamos igualmente inseridos na catástrofe.

No atual momento em que estamos, no qual a possibilidade de reconstrução está sendo iniciada, ajudar a sonhar a experiência emocional, criando e construindo narrativas para lutos e perdas, pode auxiliar na transformação do sofrimento, ódio e revolta em luta, resistência e resiliência.

A realidade mostra que um desastre climático visibiliza a desigualdade e a ausência de proteção da população. Movimentos de solidariedade da sociedade civil e a ação da psicanálise são essenciais, mas o papel do estado é crucial na reconstrução, especialmente através de políticas públicas que propiciem o retorno à vida com dignidade e segurança.