Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)

ANO 23 • • Nº 43

ÓRGÃO OFICIAL DA SOCIEDADE PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

Porto Alegre | RS

Autora

Regina Sordi

Psicanalista, coeditora da revista da SPPA

Catástrofe: entre a crueldade e a compaixão

  • O amor supera a lógica do narcisismo das pequenas diferenças, fazendo florescer o sentimento de nós, com a força da criatividade e da compaixão.

Esta breve contribuição ao tema da crueldade acontece em um momento de intensa destruição. O ruído incessante de helicópteros e ambulâncias atesta que vivemos um período de grande catástrofe ambiental em nosso Estado. A cheia dos rios, decorrente de fortes e prolongadas chuvas, inunda campos e cidades, provocando um colapso generalizado. Parte da responsabilidade cabe a nós mesmos e ao nosso controverso conceito de progresso. Como melhor compreender esta tragédia?

Ela nasce do dilaceramento entre a força vital e as formas de degradação do vivo. Para a natureza, parece que existe um acordo: entre a força da seiva e a forma da flor, existe uma ligação natural que, para o homem, representa sempre um problema. Nossa vida nunca é um dado imediato. Existimos entre a pulsão que nos atravessa e o corpo que devemos construir, entre duas coações que nos matam e que são, ao mesmo tempo, fonte de energia vital. De um lado, a vitalidade que nos inscreve e nos organiza no mundo das diferenças, que nos insere no roteiro do outro, vitalidade esta formadora dos princípios, dos signos que estruturam a sensibilidade. De outro, a vida como jorro violento, sem mediação do pensamento, ação pura de destruição.

A situação torna-se mais complexa quando reconhecemos que os fenômenos humanos surgem da ação confluente das pulsões de destruição com as pulsões de vida. De nada vale tentar eliminar as inclinações destrutivas, mas criar todo tipo de favorecimento que estreite os laços emocionais.

Testemunhamos, atualmente, o salvamento de pessoas, famílias, animais, tudo o que puder ser resgatado. Trata-se do quantum de agressividade sadia tanto dos que escolhem viver quanto daqueles que os resgatam, garantindo sua sobrevivência. O amor supera a lógica do narcisismo das pequenas diferenças, fazendo florescer o sentimento de nós, com a força da criatividade e da compaixão. É o predomínio de bios, vocábulo que possui proximidade etimológica com bia. O primeiro significa a vida, que nos fornece a aptidão à alegria, ao mito e ao rito, os quais nos reequilibram e tornam possível afrontar a angústia e a dor. Temos a ética, o lúdico, a arte.

Mas também testemunhamos bia, a violência, o quantum de agressividade capaz de se transmutar em agressão, entrando no campo da patologia, que se expressa nos atos violentos, na crueldade projetada para fora, nos saques, nas fake news e em toda sorte de ações destrutivas.

O que nos demanda a psicanálise, desde os textos freudianos, sempre afinada com a cultura de seu tempo? Talvez, para começar, um compromisso ético com a leitura das marcas e signos que compulsivamente retornam à cena social em ações violentas capazes de colocar em risco o laço social entre os homens, haja vista a falência permanente das ações reguladoras. Sobretudo, mostra a importância de preservar e seguir aperfeiçoando a palavra e a simbolização, as quais permitem que nos aproximemos e elaboremos as crueldades que nos habitam, bem como a nossa vida comunitária.