Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)

ANO 23 • • Nº 43

ÓRGÃO OFICIAL DA SOCIEDADE PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

Porto Alegre | RS

Crueldade e reparação: reflexões na contemporaneidade

  • Apesar de certa vocação para a crueldade, o ser humano é capaz de reparação.

A pauta inicial da presente edição do Jornal foi “crueldade e reparação”. Para isto, três psicanalistas, membros da SPPA, foram convidados a tecer considerações sobre esse interessante tema que possui múltiplas facetas. Contudo, enquanto fazíamos as entrevistas no mês de maio, uma catástrofe climática se sucedeu no estado do Rio Grande do Sul, afetando a todos os gaúchos, direta ou indiretamente. Sendo assim, mantivemos nosso tema original, porém integrando aspectos referentes a essa tragédia de grandes proporções. O psicanalista e psiquiatra Rudyard Emerson Sordi, membro associado da SPPA, um dos convidados, imediatamente conectou os temas, fazendo-nos refletir ao afirmar que “essa catástrofe, decorrente de efeitos climáticos com perdas irreparáveis de vidas e materiais, traz um cruel sofrimento psicológico cujo desdobramento somente o tempo dirá. No entanto, a Natureza não é cruel, a ela não pode ser atribuída uma intenção destrutiva. Penso que uma certa dose de crueldade pode estar presente de forma velada ou explícita em sistemas econômicos e políticos, principalmente através de suas lideranças”. Para Rudyard, há décadas a ciência vem comprovando o risco iminente de grandes catástrofes, apesar da recorrência de fóruns mundiais para debates sobre o tema. Percebe-se que uma negação consciente acaba por restringir a tomada de medidas realmente efetivas, para evitar cenários catastróficos.

Em muitos de seus textos, Freud deixa claro que a crueldade é uma característica intrinsecamente humana. Dentre todos os animais ferozes que habitam o planeta, o homem é o único que ataca e destrói a própria espécie e a si mesmo por puro prazer. Na atualidade, o comportamento violento, cruel, estaria mais acirrado por existir menor pudor ou disfarce nas ações desta ordem? Perguntamos isto aos entrevistados.

Rudyard acredita que, primeiramente, é necessário distinguir ferocidade de crueldade. Para ele, “ferocidade é um adjetivo criado pelo homem para designar a observação de comportamentos animais (não humanos) guiados pelos instintos de sobrevivência do indivíduo e da espécie. Crueldade é, na maioria das vezes, associada à perversão ou mesmo àquilo que chamamos de maldade. Embora possa incluir elementos de ferocidade, a crueldade parece ser uma característica humana, como descrito na pergunta quando se refere aos textos de Freud. Não sei se é possível afirmar que, na atualidade, o comportamento violento está mais acirrado por existir menor pudor ou disfarce”.

“Na minha visão, este problema deve ser pensado em termos sociais, incluindo aí diferentes culturas, diferentes distribuições geográficas, diferentes sistemas políticos, diferentes religiões, diferentes índices de desenvolvimento humano etc. Acho que distintos meios oferecem alternativas diversas para que os indivíduos possam dar destino às suas pulsões agressivas”, afirma Rudyard. Ele vai além e compara: onde é cultuada a arte e a ciência, o mecanismo de sublimação da agressividade torna-se mais efetivo, ao passo que, onde predomina o fundamentalismo, o extremismo e o fanatismo, a crueldade encontra campo fértil para se expressar. “Como tais sistemas e peculiaridades vão ser introjetadas e estruturar o psiquismo, seja de forma coletiva, seja de forma individual, pode ter relação com uma maior ou menor crueldade nas relações humanas”, conclui.

O psiquiatra e psicanalista Carlos Augusto Ferrari Filho, membro efetivo e analista didata da SPPA, alerta para o fato de que “se vive um tempo particularmente perigoso do ponto de vista da sobrevivência da espécie humana. Após algumas décadas sob a égide da chamada guerra fria, episódios de guerra quente, que podem ser o estopim para conflitos nucleares, já estão presentes em diferentes zonas do planeta. Pensando nessas formas de adoecimento da cultura do ponto de vista psicanalítico, cabe considerar a hipótese de que se vive de novo um tempo excessivamente narcísico.”

Em um artigo publicado na Revista da SPPA, Carlos Augusto escreveu “o espaço-tempo cultural disruptivo não estaria a indicar [...] um desequilíbrio na neutralização/fusão das duas grandes forças pulsionais, Eros e Tânatos? O desentendimento crescente entre nações, a fragmentação de alianças supranacionais, o questionamento e fratura dos blocos ideológicos hegemônicos nos transmite a forte impressão de que a humanidade pode estar caminhando para mais uma crise de grandes proporções. Capaz de gerar desagregação onde antes havia convergência. Com um potencial destrutivo e desorganizador capaz de colocar em xeque, mais uma vez, a estabilidade das estruturas sociais que sustentam o planeta.”

Para ele, “nesse tempo sob a égide de narciso, em que há um ataque à busca da verdade histórica, os indivíduos e a sociedade parecem perder o rumo do processo civilizatório. A desarticulação entre discurso e prática esvazia a palavra”. Como escreveu naquele artigo, na contemporaneidade, “o discurso racional, ao invés de cumprir sua vocação reveladora [...], ao tornar-se permeável à potência imperativa do desejo, preserva a aparência, mas perde em essência. Ao defender interesses narcísicos em detrimento de objetivos mais elevados, como por exemplo, o interesse coletivo, através de manobra dissimulativa, o discurso, ou o uso da palavra, confunde e engana.” Carlos Augusto conclui afirmando que “quando se cala a palavra, o que sobra é a ação, que, por muito pouco, pode tornar-se crueldade ou ferocidade”.

Já a psiquiatra e psicanalista Eneida Iankilevich, membro efetivo e didata da SPPA, questiona a declaração “o homem é o único que ataca e destrói a própria espécie e si mesmo por puro prazer”. Para ela, é importante especificar essa afirmação, “pois o prazer a que se refere só pode ser entendido se não for como sentimento de prazer, mas dentro da teoria das pulsões (Freud). Existe prazer (sentimento) em infligir dor, mas como patologia”, argumenta.

Eneida também questiona se, em função da mídia, o comportamento cruel está mais acirrado ou é mais informado. “Sempre penso numa afirmação de como ‘o jovem de hoje’ não respeita os mais velhos, sendo arrogantes e onipotentes... feita por Aristóteles!”, afirma. “Não penso que exista menor pudor ou disfarce nas ações dessa ordem, mas sim mais informação momento-a-momento e globalizada, expondo o problema. Estudos populacionais comparativos entre épocas poderiam nos dizer se é um fenômeno mais prevalente em nosso tempo. Não me parece possível saber se isso aumentou ou não, somente que é mais informado e noticiado”.

As redes e a crueldade social

Considerando esses tempos em que as informações chegam de forma muito veloz, invadindo nossa privacidade sem solicitação, propusemos aos entrevistados pensar como podemos avaliar as redes sociais na disseminação da crueldade. Será que o sujeito torna-se mais cruel por se sentir protegido pelo anonimato nelas?

Para Rudyard, a evolução da tecnologia digital nos bombardeia constantemente com as mais diversas informações, causando algum grau de perturbação na discriminação entre o essencial e o secundário, entre o verdadeiro e o falso, entre o real e a fantasia. “Acredito que esta tecnologia, especialmente as redes sociais, ampliou sobremaneira o campo em que manifestações de crueldade podem ser exercidas. Temos vários exemplos de bullying, como humilhações, ameaças, induções a autoagressões e suicídios etc. Indivíduos vulneráveis a este tipo de assédio tornam-se ainda mais sujeitos à crueldade”. Ele não acredita que o indivíduo passe a ser mais cruel pelo anonimato, mas que as pessoas, já possuindo previamente uma constituição psíquica com características cruéis, perversas e maldosas, encontrem nas redes sociais uma forma de não assumir a responsabilidade pelas próprias condutas destrutivas. Outro ponto questionado por Rudyard diz respeito à personalidade dos indivíduos que usam deste recurso para se expressar: “suponho que pessoas com tendências narcísicas, exibicionistas e histéricas utilizem menos a proteção do anonimato do que aquelas com tendências perversas e paranoides”.

Já Augusto aponta para a ilusória proteção do anonimato das redes sociais, “espécie de véu, ou biombo, que, quando atenua a pressão superegóica, é facilitador de uma regressão do ego a serviço do mundo instintual. À semelhança da vivência grupal, acrescida da impressão de impunidade, a imersão nas redes sociais poderia ser considerada como fator precipitante sob determinadas circunstâncias, mas não agente causal em relação à crueldade. Determinante, penso eu, permanece sendo a estrutura de personalidade”, afirma.

Para a psicanalista Eneida, a questão do anonimato é muito importante. “Responsabilizar-se por aquilo que se diz institui complexidade, em especial por acontecer em contextos relacionais pessoais. Em virtualidade, não se estaria falando com ‘alguém’, mas com ‘todos’, e, sim, concordo que esse fato muda o contexto. Penso que a questão é responsabilizar-se pelo que se pensa e diz diante do outro. Ou diluído numa ‘entidade’ grupal, algo que Meltzer já assinalava ser uma difusão de identidade que dá um sentimento de poder”, argumenta ela.

A crueldade e a capacidade de reparação que habitam em nós

Temos presenciado, cada vez mais, a grande capacidade do ser humano para a destruição, tanto do meio ambiente quanto das relações e da própria vida no planeta. No entanto, sabemos também de sua capacidade de restauração, reparando aquilo que, cruelmente, tentou destruir através dos próprios impulsos agressivos.

Nesse sentido, Rudyard pontua que o conceito de reparação faz parte do pensamento Kleiniano. “Com origem nas ideias de Freud sobre as pulsões de vida e de morte, a estrutura do superego e o sentimento de culpa, Klein desenvolveu sua teoria das relações de objeto. Faz parte deste desenvolvimento a ‘posição depressiva’, caracterizada pelo reconhecimento do objeto total, predominância das pulsões amorosas, consideração e gratidão ao objeto, sentimento de culpa e necessidade de reparação, derivando as pulsões agressivas para outras defesas mais elaboradas, em especial a simbolização e sublimação como forma de crescimento mental”. Entretanto, ele pondera que esta dinâmica já é bem conhecida. Rudyard sugere abordar o irreparável, mas em termos mais amplos, sociais. Lembra que “a história nos conta que guerras sempre existiram, e atualmente várias estão em andamento no planeta. Em função da mídia, as mais divulgadas são as do grupo terrorista Hamas e Israel e da Rússia e Ucrânia. A crueldade e o sofrimento estão à disposição em tempo real em vídeo e áudio para quem se habilita a tomar contato com tais horrores”. Vai além e questiona: “que sentimento de culpa é capaz de desencadear os movimentos mentais de reparação, seja do ponto de vista coletivo, seja de forma individual, por aqueles que tem o poder de determinar tais ocorrências? Ainda mais quando o substrato real se mostra irreparável, como a perda de vidas e as sequelas físicas e mentais? Difícil de responder. Quem se declara responsável pela destruição, com ressentimento e consideração aos atingidos?”

Sobre o “irreparável”, Rudyard lembra o Holocausto, modelo incomparável de crueldade, degradação e destrutividade do ser humano. “Neste aspecto, o termo reparação poderia ser substituído por prevenção. A compreensão de quão terrível pode ser a agressividade humana, aliada ao aprender com a experiência e à preservação da memória, é capaz de contribuir para que líderes mais humanistas, no sentido positivo da palavra, não permitam a repetição de situações semelhantes”, afirma.

Olhando para a cultura e para o processo civilizatório, a propósito da eterna luta entre destruição versus reconstrução, Carlos Augusto se identifica com o postulado freudiano que revela o efeito da dualidade pulsional entre Eros e Tânatos, reconhecendo que a realidade histórica, psicanaliticamente falando, é resultante da relação entre essas forças construtivas e desconstrutivas. “Segundo Freud, em certas situações, como é o caso do momento histórico contemporâneo, o desnivelamento (Freud fala em desentrincamento pulsional) dessas forças, com a consequente presença de um excesso tanático, faz com que a humanidade volte a adoecer. E um dos sintomas dessa doença é exatamente a piora dos traços de destrutividade da espécie humana”, explica ele.

Eneida afirma que Freud construiu sua teoria e propôs sua técnica a partir da noção de conflito, o que manteve ao longo de toda a sua obra: “Os filósofos sempre enfatizam a ‘dualidade’ humana. Melanie Klein destaca que reparar não é desfazer o dano, mas sim parar de continuar atacando”. A psicanalista acredita que o conflito está na estrutura da humanidade, sendo gerador inclusive da capacidade de pensar. “Sem conflito, já ensinava Freud, não haveria progresso. Green torna mais vívida, acredito, essa noção, quando descreve as funções objetalizante e desobjetalizante, em que, se uma não se contrapõe à outra, haveria o desaparecimento por fusão ou por isolamento absoluto”, explica ela.

Sobre as contribuições da Psicanálise

Provocamos os entrevistados a compartilhar suas ideias sobre como acreditam que a psicanálise possa contribuir, além do que já vem sendo feito, para um futuro menos cruel para a humanidade, tendo em vista os novos paradigmas impostos pela evolução tecnológica e sua influência sobre a mente humana.

Rudyard acredita que a psicanálise possa contribuir ao trabalhar em conjunto e consonância com outras ciências. “A evolução e as descobertas das neurociências que mapeiam circuitos e zonas neuronais ligadas à memória, ao prazer e desprazer, bem como a bioquímica envolvida nestas interações, possivelmente têm sua contribuição na maneira com que são formados os modelos psíquicos de relações objetais”, afirma. Para ele, o método psicanalítico, ao abordar tais relações, evoca emoções, produz reações, rebusca memórias e promove novas experiências, sempre buscando mudança psíquica. “A evolução dos recursos tecnológicos das neurociências parece demonstrar que o efeito é recíproco, e a análise, ao provocar mudança psíquica, também determina alterações na bioquímica e funcionamento cerebral. Penso que tais descobertas ampliam o leque de alternativas terapêuticas derivadas da e apoiadas pela teoria psicanalítica, bem como um maior conhecimento do funcionamento cerebral. Melhorar o acesso a estes recursos pode resultar, em algum grau, em uma evitação de submeter-se a condutas agressivas”.

Em relação à coletividade, Rudyard aponta que uma contribuição importante é o trabalho conjunto com o sistema educacional, em especial no período pré-escolar e séries iniciais, quando as relações sociais extrafamiliares se intensificam e criam raízes. “Programas de reuniões sistemáticas e discussões com cuidadores e professores para a compreensão do funcionamento mental e sua relação com o comportamento, bem como o pensar a respeito de manejo de situações trazidas pelos participantes, é um trabalho que já vem sendo realizado em alguns locais, inclusive na SPPA”, destaca. Para ele, a avaliação periódica dos resultados fornece elementos para abordagens mais amplas e complexas. “Acho que este trabalho tem potencial para uma diminuição da agressividade e crueldade no futuro desta geração iniciante”.

Na opinião de Carlos Augusto, o papel da psicanálise permanece o mesmo desde seus tempos pioneiros no início do século XX. “Sendo a disciplina que postula o reconhecimento do inconsciente, e, como decorrência disso, de uma luta, muitas vezes inconsciente, entre forças construtivas e desconstrutivas, tanto em nível individual como na dimensão da cultura, o pensamento psicanalítico é uma espécie de salva-vidas do processo civilizatório. Nesse sentido, deve se manter como farol capaz de (re)lembrar dos riscos que corremos, toda vez que a humanidade se deixa levar pelos apelos do belicismo fanático”.

Eneida acredita que a psicanálise, ao propor um entendimento do ser humano que vai além do que sua conduta e comportamento visível expressam, contribui para que se possa pensar nas múltiplas motivações das condutas. “No contexto social, creio que o entendimento da necessidade do ser humano de encontrar saídas para o desamparo original, a noção de sua pequenez diante da realidade, da força do meio (natureza) e, portanto, sua busca por constituir grupos que possam dar segurança e força (mesmo que ilusórias) diante dessa noção de incompletude, limites e fragilidades, pode ser essencial para a construção de sociedades mais justas”, pondera.

Para ela, poder estudar e reconhecer os mecanismos inconscientes na constituição de grupos, tornando possível usar mecanismos menos primitivos, favorecer o pensar, pode ser uma importante contribuição da psicanálise à sociedade. “Mas isto impõe suportar limites, admitir perdas, o que é difícil para nós, seres humanos. A ilusão de onipotência, até talvez gerada pelo desenvolvimento tecnológico, infelizmente me parece ser uma importante força que se opõe a isso”, afirma.